Era quase de manhã, mas já dava para saber como aquela manhã seria, daquelas como qualquer outra, a vista da janela já dava pra dizer que o dia se tornaria um bom dia, com um sol pra se aquecer, pássaros cantando em seus jardins cobertos por flores da primavera, gaivotas perturbando os compradores em peixarias, se você parasse um pouco com os pensamentos gritantes na cabeça poderia ouvir de leve o começo de um transito se formando pela manhã, era engraçado o contraste de uma cidade do litoral, o barulho das balsas de travessia já trabalhando a todo vapor, todas aquelas praias com seu céu em um lindo tom alaranjado se preparando para dar boas vindas ao sol, os pássaros na beira da água andando quase como um ritual de passagem, aquele ar úmido que torna quase insuportável respirar.
O Começo do dia era o meu preferido momento, desde muito pequena, era como se a vida estivesse dando um novo recomeço, uma chance de fazer melhor ou cometer o mesmo erro.
Dei um pulo com o despertador, fazia anos que eu não precisava mais dele, desde muito pequena eu não tenho sono, costumava ficar dias acordada e logo em seguida dormir dias seguidos. Costumava achar que esse era meu maior defeito até descobrir uma profissão que se encaixava perfeitamente.
Tomar banho... Escolher a roupa... Pegar as chaves... Ligar o alarme... Trancar as portas... Pegar o elevador... Entrar no carro... Olhar para o retrovisor... Já parou para pensar como fazemos coisas aleatórias automaticamente? Rotina: Hábito de fazer uma coisa sempre do mesmo modo, mecanicamente; repetição monótona das mesmas coisas; apego ao uso geral, sem interesse pelo progresso.
A única coisa que me anima quando entro no carro é exatamente o momento que essa rotina parcialmente acaba e então eu ligo o som sem idéia de qual musica virá e qual efeito ela causará em mim, isso, e o primeiro café do dia são como uma corrente elétrica que faz a mecânica do meu cérebro começar a engrenar.
Quando entrei para pericia criminal me imaginava em cenas de crimes complexas, impossíveis de se resolver, grandes quebras cabeças com muitas perguntas quase nenhuma resposta, grande quadros com fotos de locais de crimes ligados a uma teia de fios vermelhos em rostos de prováveis suspeitos. Você começa a desanimar quando tudo que você tem são crimes passionais, depredação pública, guerras familiares ou crimes óbvios demais para aguçar o interesse, porém, olhando de todos os ângulos parece egoísmo da minha parte querer crimes com grandes desafios, toda vitima tem uma vida que envolve famílias, casos, profissões, paixões, conquistas e derrotas.
Quando eu era criança meu pai dizia “Quando estiver em um desafio, sempre esteja dois passos à frente caso seja o desafiado ou dois passos atrás caso seja o desafiador, para que nunca perca o ângulo da observação, nunca tenha pressa, sempre tenha no mínimo cinco planos caso seja o atacante, sempre manipule e principalmente, nunca... Nunca fique no caminho”. Eu confesso que fiquei decepcionada quando descobri que essa frase era uma forma poetizada de explicar as regras do cavalo num jogo de xadrez, mas descobri certo sentido nela quando fui advertida na escola por bater em um menino que me perturbava. Lembro como se fosse hoje quando vi meu pai saindo da diretoria decepcionado, ele ficou em silêncio o caminho todo da escola à porta de casa. Nós entramos, ele pegou um caderno e me fez escrever duzentas vezes essa frase, quando o terminei ele disse que minha punição não era por ter aprontado e sim por ter sido pega, na época nada fez sentido. Não que o meu pai tenha feito algum sentido na minha vida, até porque eu só fiquei com ele até os nove anos e pelo que me lembro dele, ele era rígido, porém nunca me deu uma só correção que não verbalmente, ele era calmo, quieto e sério, sempre muito sério. Eu fui para casa de adoção quando minha mãe morreu e ele preso acusado de matá-la, ela e mais 37 mulheres que a policia tem conhecimento. Se é a verdade eu não sei, nunca acharam provas contra ele, mas ele confessou cada morte depois do que fez com a minha mãe. Minha mãe era uma mulher completamente desalinhada ao meu pai, sempre brincalhona, extrovertida, desastrada e absolutamente teimosa. Era ela quem trazia luz para casa. Ninguém jamais diria que minha família teria esse fim tão trágico. Meu pai era professor de psicologia e minha mãe fazia faculdade de artes visuais, eles se conheceram na faculdade e ela largou o curso quando ficou grávida, o pai dela obrigaram os dois a casar. Minha mãe me deu o nome de Liatris, o nome de uma flor que cresce de cima para baixo e resiste a praticamente tudo. Isso que dá nascer de uma artista.
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Batalha de Rainhas
Ficción General[ CONCLUÍDA] E lá estava ela, sem saber que sangue tinha circulando em suas veias, nem tão pouco em quem confiar. Ja há um tempo não muito distante, quase no presente, ela acreditava saber o significado da palavra ficção, ato ou efeito de fingir, s...