II - O país das maravilhas

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Pode me chamar de Zumbi.
Cabeça, mãos, pés, costas, estômago, pernas, braços, peito - tudo dói. Até piscar dói. Assim, tento não me mexer e não pensar demais na dor. Tento não pensar demais, ponto final. Já vi o suficiente da peste nos últimos três meses para saber o que vai acontecer: colapso total do organismo, começando pelo cérebro. A Morte Vermelha transforma seu cérebro em purê de batatas antes que os outros órgãos se liquefaçam. Você não sabe onde está, quem é e o que é. Sai andando com o um zumbi. Se tiver forças para andar, o que não vai ter.
Estou morrendo.
Sei disso.
Tenho 17 anos de idade, e a festa acabou. Festa curta.
Seis meses atrás, minhas maiores preocupações limitavam-se a passar na prova de química avançada e encontrar um emprego de verão que pagasse o bastante para eu terminar de reformar o motor do meu Corvette 69. Quando a nave mãe apareceu pela primeira vez, naturalmente o fato dominou a maior parte de meus pensamentos, mas, após algum tempo, recuou para um distante quarto lugar. Eu assistia às noticias com o todas as pessoas e passei tempo demais partilhando vídeos engraçados sobre o assunto no YouTube, mas nunca pensei que iria ser pessoalmente afetado. Ver na TV todas as manifestações, marchas e tumultos, resultantes do primeiro ataque, foi com o assistir a um filme ou cenas do noticiário de algum país estrangeiro. Eu tinha a impressão de que nada daquilo estava acontecendo comigo.
Morrer não é muito diferente disso. Você não sente que vai lhe acontecer... até que acontece com você.
Sei que estou morrendo. Ninguém precisa me dizer.
Chris, o sujeito que dividia esta barraca antes de eu adoecer, me diz, mesmo assim:
- Cara, acho que você está morrendo - ele fala, agachado do lado de fora da entrada da barraca, os olhos arregalados e sem piscar acima do trapo sujo que lhe cobre o nariz.

Chris passou para ver como eu estava. Ele é uns dez anos mais velho, e acho que me considera como se eu fosse um irmãozinho. Ou talvez ele tenha vindo para verificar se ainda estou vivo. Ele é o encarregado da remoção nesta parte do campo. As fogueiras queimam dia e noite. Durante o dia, o campo de refugiados que rodeia Wright-Patterson fica mergulhado em uma névoa densa e sufocante. Durante a noite, a luz do fogo espalha uma cor rubra e intensa, como se o próprio ar estivesse sangrando.
Ignoro seu comentário e pergunto o que tem ouvido sobre Wright-Patterson, A base tem estado totalmente isolada desde que a cidade de barracas cresceu rapidamente após o ataque às costas. Ninguém tinha permissão de entrar ou sair, eles estão tentando conter a Morte Vermelha, é o que nos dizem.

Ocasionalmente, alguns soldados bem armados e vestidos com roupas de proteção rolam para fora pelos portões principais com água e provisões, dizem que tudo vai ficar bem , e então disparam para dentro novamente, deixando-nos à nossa própria sorte. Precisamos de remédios. Eles dizem que não há cura para a peste. Precisamos de instalações sanitárias. Eles nos entregam pás para cavar valas. Precisamos de informações. "Que raios está acontecendo?" Eles dizem que não sabem .
- Eles não sabem nada - Chris me diz. Ele é um sujeito magro com os primeiros sinais da calvície. Era contador, antes de os ataques tornarem a contabilidade uma ocupação obsoleta. - Ninguém sabe nada. Apenas um monte de boatos que todos tratam como notícias. - Seu olhar prende-se ao meu, e então ele o desvia. Olhar para mim dói. - Quer saber da última?
Na verdade, não.
- Claro - digo, para mantê-lo ali.
Eu só conhecia o sujeito havia um mês, mas, dos que sobraram , ele era o único que eu conhecia. Estou deitado naquela velha cama de armar com um fiapo de céu como vista. Formas vagas com aparência de pessoas vagueiam na fumaça, como personagens de um filme de terror, e, às vezes, ouço gritos ou choro, mas não falo com ninguém há dias.
- A peste não é deles, é nossa - Chris continua. - Escapou de alguma instalação supersecreta do governo depois da falta de energia.
Tusso. Ele se encolhe, mas fica. Espera que o acesso passe. Em algum ponto, ao longo do caminho, ele perdeu uma das lentes dos óculos. O olho esquerdo vive permanentemente semicerrado. Agora, agachado, ele apoia o peso do corpo primeiro em um pé e depois no outro, no chão lamacento. Ele quer ir embora. Ele não quer ir embora. Conheço a sensação.
- Isso não seria irônico? - falo, meio sufocado. Sinto gosto de sangue.
Ele dá de ombros. Ironia? Não existe mais ironia. Ou, talvez, exista tanta que se deve chamá-la por outro nome.
- Não, é nossa. Pense nisso. Os dois primeiros ataques fazem os sobreviventes fugir para o interior para se abrigar em campos como este. Isso concentra a população, criando o terreno de propagação ideal para o vírus. Milhões de quilos de carne fresca convenientemente localizada em um lugar. É genial.
- Precisamos devolvê-la para eles - digo, tentando ser irônico.
Não quero que ele se vá, mas também não quero que fale. Ele tem o hábito de discursar, é um daqueles sujeitos que têm opinião formada sobre tudo. Mas algo acontece quando todos que você conhece morrem alguns dias depois de tê-los conhecido: você começa a ser bem menos exigente sobre quem lhe dá atenção. Você consegue ignorar uma série de defeitos. E passa a não dar importância a uma série de dificuldades pessoais, como a grande mentira de que ter as entranhas se liquefazendo não o deixa totalmente aterrorizado.
- Eles sabem o que pensamos - ele diz.
- E como você sabe o que eles sabem?
Estou ficando zangado. Não sei bem por quê. Talvez esteja com inveja. Nós dividimos a barraca, a água, a comida, e quem está morrendo sou eu. O que faz dele uma pessoa tão especial?
- Eu não sei - ele responde, depressa. - A única coisa que sei é que já não sei mais nada.
A distância, uma arma é disparada. Chris mal reage. Som de tiros é algo comum no campo. Tiros em aves, ao acaso. Tiros de aviso para gangues que querem saquear o que é seu. Alguns sinalizam um suicídio, uma pessoa nos estágios finais que decide mostrar à peste quem é que manda. Quando cheguei ao campo, ouvi uma história sobre a mulher que preferiu se matar, depois de matar os três filhos, a enfrentar o Quarto Cavaleiro. Não consegui decidir se ela foi corajosa ou tola. E, então, parei de me preocupar com o assunto. Quem se importa com o que ela havia sido, se agora estava morta?
Ele não tinha muito mais a dizer, então fala rapidamente para sair dali. Como muitos dos não infectados, Chris sofria de um caso grave de ansiedade, sempre à espera do próximo inevitável passo. Garganta irritada: cigarro ou...? Dores de cabeça: falta de sono, fome ou...? É o momento de passar a bola, e, como canto do olho, você vê o jogador de 120 quilos aproximando-se em velocidade máxima. Só que o momento nunca termina.
- Volto amanhã - ele promete. - Você precisa de alguma coisa?
- Água. - Apesar de não conseguir mantê-la no estômago.
- Eu trago.
Chris levanta-se. Tudo que vejo agora são suas calças sujas de lama e as botas emplastadas de terra. Não sei como sei, mas sei que é a última vez que vou vê-lo. Ele não vai voltar, ou, se voltar, não vou perceber. Não dizem os adeus. Ninguém mais diz adeus. A palavra assumiu um significado inteiramente novo desde que apareceu o Grande Olho Verde no Céu.
Observo a fumaça formar uma espiral quando ele passa. Então, tiro a corrente de prata de sob o cobertor. Esfrego o polegar na superfície lisa do medalhão em forma de coração, seguro-o perto dos olhos na luz fraca. O fecho quebrou na noite em que o arranquei do pescoço dela, mas consegui consertá-lo com um cortador de unhas.
Olho para a entrada da barraca e a vejo parada ali, e sei que não se trata realmente dela, mas a imagem mostrada pelo vírus, porque ela está usando o mesmo medalhão que seguro na mão. O micróbio tem me mostrado todos os tipos de imagens. Imagens que quero, e outras que não quero ver. A garotinha na entrada é as duas coisas.
"Bobby, por que você me deixou?"

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