V - Separando o joio do trigo

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Cassie, pela janela suja, encolhendo-se.

Cassie, na estrada, segurando Urso.

Erguendo o braço para ajudá-lo a dizer adeus.

"Adeus, Sammy,"

"Adeus, Urso."

A poeira da estrada subindo em nuvens provocadas pelos pneus negros do ônibus. E Cassie se encolhendo no redemoinho marrom.

"Até logo, Cassie."

Cassie e Urso ficando cada vez menores, e a rigidez do vidro sob os dedos dele.

"Adeus, Cassie. Adeus, Urso."

Até que a poeira os engole, e ele fica sozinho no ônibus lotado, sem a mãe, sem o pai, sem Cassie. Talvez não devesse ter deixado Urso, porque Urso estava com ele desde antes de poder se lembrar de qualquer coisa. Urso sempre existiu. Mas também sempre houve mamãe. Mamãe, vovó, vovô e o resto da família.

E as crianças da classe da srta. Neyman, e a srta. Neyman e os Majewskis, e a simpática caixa do Kroger que sempre guardava pirulitos de morango debaixo do balcão.

Eles também sempre estiveram lá, como Urso, desde antes de ele poder lembrar, e agora não estavam mais. Quem sempre esteve lá não estava mais, e Cassie disse que não iriam voltar. Nunca mais. O vidro lembra quando ele tira a mão. Ele conserva a lembrança de sua mão. Não como uma fotografia, porém mais como uma sombra difusa, da mesma forma que o rosto da mãe fica embaçado quando tenta se lembrar dela. Todos os rostos que conheceu desde que soube o que eram rostos, exceto os do pai e de Cassie, estavam desaparecendo. Agora, todos os rostos são novos, todos os rostos são estranhos. Um soldado caminha pelo corredor em sua direção. Ele tinha tirado a máscara negra. O rosto do homem é redondo, o nariz, pequeno e pontilhado de sardas. Ele não parece muito mais velho do que Cassie. O rapaz está distribuindo saquinhos de balas de goma e caixas de suco. Dedos sujos agarram os petiscos. Algumas crianças não comem há dias.

Para algumas, os soldados são os primeiros adultos que eles veem desde que os pais morreram. Algumas crianças, as mais quietas, foram encontradas nos arredores das cidades, vagando entre pilhas de corpos escurecidos e semi- carbonizados, e olham para tudo e todos como se tudo e todos fossem algo que nunca tinham visto antes. Outros, como Sammy, foram resgatados de campos de refugiados ou pequenos grupos de sobreviventes que buscavam ser resgatados, portanto suas roupas não estão tão esfarrapadas, e seus rostos não tão magros, e seu olhar não tão vazio quanto o das crianças quietas, as encontradas vagando entre pilhas de mortos. O soldado chega à fileira do fundo. Ele está usando uma faixa branca na manga, na qual se vê uma grande cruz vermelha.

— Ei, quer um lanche? — o soldado lhe pergunta.

A caixa de suco e as balas de goma em forma de dinossauros, O suco está frio. Frio. Ele não toma algo frio há séculos. O soldado escorrega para a cadeira ao seu lado e estica as pernas no corredor. Sammy empurra o fino canudo de plástico para dentro da caixa de suco e suga, enquanto os olhos pousam no vulto imóvel de uma garota encolhida na cadeira do outro lado. Os shorts dela estão rasgados, a blusa cor-de-rosa manchada de fuligem, os sapatos emplastados de lama. Ela sorri durante o sono. Um sonho bom.

— Você a conhece? — o soldado pergunta a Sammy. Sammy sacode a cabeça. Ela não estava no campo de refugiados com ele.

— Por que você tem essa grande cruz vermelha?

— Sou médico. Ajudo pessoas doentes.

— Por que você tirou a máscara?

— Não preciso dela agora — responde o médico, antes de jogar um punhado de balas na boca.

A 5ª OndaOnde histórias criam vida. Descubra agora