III - O silenciador

98 2 0
                                    

31

Deveria ter sido fácil. Ele só precisava esperar.
Ele era muito bom em esperar. Podia ficar agachado durante horas, imóvel, em silêncio, ele e seu fuzil, um só corpo, uma mente, a linha indistinta onde ele terminava e a arma começava. Até mesmo a bala atirada parecia ligada a ele, presa por um cordão invisível ao seu coração, ao osso ligado à bala.
O primeiro tiro a derrubara, e ele rapidamente atirou de novo, errando totalmente. O terceiro tiro quando ela mergulhou para o chão ao lado do carro, explodindo o para-brisa traseiro do Buick numa nuvem de vidro inquebrável pulverizado.
Ela havia ido para baixo do veículo. Sua única opção, na verdade. O que deixou duas para ele: esperar que ela saísse ou deixar sua posição na floresta à beira da rodovia, e pôr um fim à situação. A opção com menor risco era permanecer onde estava. Se rastejasse para fora, ele a mataria. Se ficasse onde estava, o tempo a mataria.
Ele recarregou devagar, com o vagar de quem sabe que tem todo o tempo do mundo. Após dias seguindo-a, concluiu que a garota não ia a lugar algum . Ela era esperta demais para isso. Três tiros não conseguiram derrubá-la, mas ela entendeu quais seriam as probabilidades de um quarto não atingi-la. O que tinha escrito no diário?
"No fim não seriam os felizardos a permanecerem vivos."
Ela ia seguir os seus instintos. Rastejar para fora não tinha nenhuma chance de sucesso. Ela não podia correr e, mesmo que pudesse, não sabia qual lugar era seguro. Sua única esperança era o atirador abandonar o esconderijo e forçar a situação. Nesse caso, tudo seria possível; Talvez ela até tivesse sorte e o acertasse primeiro.
Se houvesse um confronto, o atirador não tinha dúvidas de que ela se recusaria a ser derrotada sem luta. Ele viu o que a garota tinha feito ao soldado na loja de conveniência. Talvez estivesse aterrorizada na época, e matá-lo deve tê-la incomodado depois, mas o medo e a culpa não a impediram de encher o corpo dele de chumbo. O medo não paralisou Cassie Sullivan, como acontecia com alguns seres humanos. O medo clareava seu raciocínio, fortalecia sua vontade, definia suas opções. O medo a manteria sob o carro, não por ter receio de sair, mas porque ficar era a única esperança de continuar viva.
Assim sendo, iria aguardar. Tinha horas antes do anoitecer. Até então, ela teria sangrado até morrer ou estaria tão fraca devido à perda de sangue e desidratação, que seria fácil matá-la. Matá-la. Matar Cassie. Não Cassie, de Cassandra, ou Cassie, de Cassidy. Cassie de Cassiopeia, a garota da floresta que dormia com um ursinho numa das mãos e um fuzil na outra. A garota com cachos dourados, um pouco mais de 1,80 metro de altura, descalça, de aparência tão jovem, que ficou surpreso ao descobrir que tinha 16 anos. A garota que soluçava nas profundezas da floresta escura com o breu, aterrorizada em um momento, desafiadora em outro, imaginando se seria a última pessoa na Terra, enquanto ele, o caçador, encontrava-se escondido a alguns metros de distância, ouvindo-a chorar até a exaustão levá-la para um sono inquieto. O momento perfeito para entrar silenciosamente em seu acampamento, encostar a arma em sua cabeça e matá-la. Por que era isso que ele fazia. Era isso o que ele era: um matador. 

Ele vinha matando seres humanos desde o início da peste. Durante quatro anos agora, desde que tinha 14 anos, quando acordou dentro do corpo humano que lhe tinha sido destinado, ele sabia o que era. Matador. Caçador. Assassino. O nome não importava. O nome de Cassie para ele, Silenciador, era tão bom quanto qualquer outro. Ele descrevia seu objetivo: extinguir os ruídos humanos.
Mas não o fez naquela noite. Ou nas noites seguintes. E, a cada noite, aproximando-se furtivamente um pouco mais da barraca, andando lentamente sobre a forração de folhas em decomposição e o solo lamacento, até sua sombra surgir na estreita abertura da barraca e cair sobre ela. A barraca estava tomada por seu cheiro. E lá estavam a garota adormecida agarrada ao ursinho de pelúcia e o caçador segurando a arma: um sonhando com a vida que lhe foi tirada, o outro pensando na vida que iria tirar. A garota adormecida, e o matador, tencionando matá-la.
Por que não a matou?
Por que não conseguia matá-la?
Ele disse a si mesmo que aquilo não era sensato, Ela não podia ficar naquela floresta indefinidamente. Ele poderia usá-la para levá-lo a outros de sua espécie. Seres humanos eram animais sociais. Eles se amontoavam como abelhas. Os ataques contavam com essa adaptação crítica. O instinto evolutivo que os impeliu a viver em grupos foi a oportunidade de matá-los aos milhões. O que os humanos diziam? Era nas grandes quantidades que estava a força.
E, então, ele encontrou os cadernos e descobriu que não havia plano, nenhum objetivo real a não ser sobreviver até o dia seguinte. Ela não tinha para onde ir e ninguém a quem procurar. Ela estava só. Ou acreditava que estava.
Ele não voltou ao acampamento dela naquela noite. O rapaz esperou até a tarde do dia seguinte, sem dizer a si mesmo que estava lhe dando tempo para juntar suas coisas e partir. Não se permitindo pensar em seu choro silencioso e desesperado: "Às vezes, acho que sou a última pessoa na Terra."
Agora que os últimos minutos do último ser humano se estendem sob o carro na rodovia, a tensão em seus ombros começa a diminuir. Ela não ia a lugar algum. Ele baixou o fuzil e agachou-se junto à base da árvore, girando a cabeça de um lado a outro a fim de aliviar a rigidez na nuca. Estava cansado. Não vinha dormindo bem ultimamente. Nem comendo. Tinha perdido alguns quilos desde o surgimento da 4ª Onda. Ele não estava muito preocupado, Ele tinha previsto algum tipo de pressão psicológica e física no início da 4ª Onda. A primeira morte seria a mais difícil, mas a próxima seria mais fácil, e a seguinte ainda menos complicada, porque é fato: até mesmo pessoas muito sensíveis podem se acostumar a coisas extremamente insensíveis. 

A 5ª OndaOnde histórias criam vida. Descubra agora