VI - A argila humana

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Ben Parish está morto.Não sinto falta dele, Ben era um covarde, um chorão, um bebê. Mas nãoZumbi.Zumbi é tudo que Ben não era. Zumbi é durão. Zumbi é mau. Zumbi é friocomo pedra.Zumbi nasceu na manhã em que deixei a ala de convalescentes. Troquei acamisola fina por uma roupa de proteção azul. Recebi um beliche no Alojamento10. Recuperei a forma correndo três quarteirões por dia e com um rígidotreinamento físico, mas principalmente com a ajuda de Reznik, o instrutor-chefede treinamento do regimento, o homem que partiu Ben Parish em milhões depedaços e depois o reconstruiu e transformou na impiedosa máquina mortíferaque é hoje.Não me entendam mal: Reznik é um bastardo cruel, insensível e sádico, eadormeço todas as noites imaginando meios de matá-lo. Desde o primeiro dia,ele assumiu a missão de tornar a minha vida a pior possível, e foi muito bemsucedido. Fui estapeado, socado, empurrado, chutado e cuspido. Fuiridicularizado, desmoralizado e ouvi gritos que fizeram meus ouvidos tinir.Obrigado a ficar durante horas na chuva fria, escovar o chão de todas osalojamentos com uma escova de dentes, desmontar e remontar meu fuzil até osdedos sangrarem, correr até as pernas se transformarem em gelatina... Vocês entenderam. Eu, porém, não entendi. Não no início. Estava ele me treinando para serum soldado ou tentando me matar? Eu tinha quase certeza de que a últimahipótese era a correta. Então me dei conta de que eram ambas: ele realmenteestava me treinando para ser um soldado - tentando me matar.Vou lhes dar um exemplo. Um é suficiente.Exercícios físicos no pátio, todos os esquadrões do regimento, mais de cemgrupos de soldados, e Reznik escolhe esse momento para me humilharpublicamente. Assomando sobre mim, as pernas bem separadas, mãos nosjoelhos, seu rosto gorducho e bexiguento perto do meu, enquanto eu mergulhavapara o chão na flexão número 79.
- Cabo Zumbi, a sua mãe teve algum filho que viveu?
- Senhor! Sim, senhor!
- Aposto que, quando você nasceu, ela deu uma olhada e tentou empurrarvocê para dentro outra vez!
Pressionando o calcanhar da bota preta no meu traseiro para obrigar- me aabaixar. Meu esquadrão está fazendo flexões apoiado nos nós dos dedos, na trilhade asfalto que cerca o pátio, porque o solo está sólido e congelado, e o asfalto absorve o sangue. Não é possível escorregar muito. Ele quer me fazer falharporque eu chego a cem flexões. Faço força de encontro ao seu calcanhar. Nãovou recomeçar, de jeito nenhum. Não na frente de todo o regimento. Esperando que Reznikvença. Reznik sempre vence.
- Cabo Zumbi, você acha que sou mau?
- Senhor! Não, senhor! Meus músculos queimam. Os nós dos dedos estão em carne viva.Recuperei um pouco do peso perdido, mas terei recuperado a alma?Oitenta e oito. Oitenta e nove. Falta pouco.
- Você me odeia do fundo da alma?
- Senhor! Não, senhor!Noventa e três. Noventa e quatro.
Alguém de outro esquadrão sussurra:
- Quem é esse cara?
- E outra pessoa, uma garota, diz:
- O nome dele é Zumbi.- Você é um matador, cabo Zumbi?- Senhor! Sim, senhor!- Você come cérebros de alienígenas no café da manhã?- Senhor! Sim, senhor!Noventa e cinco. Noventa e seis. No pátio, o silêncio é fúnebre. Não sou oúnico recruta que detesta Reznik. Um dia desses, alguém vai pagá- -lo na mesmamoeda, é isso que penso, é isso que pesa nos meus ombros, enquanto luto pelonúmero cem.- Bobagem! Ouvi dizer que você é um covarde. Que foge da luta.- Senhor! Não, senhor!Noventa e sete. Noventa e oito. Mais duas e venci. Escuto a mesma garota,ela deve estar parada nas proximidades, sussurrar:- Vamos!Na flexão de número 99, Reznik me empurra para baixo com o calcanhar.Bato o peito com força, rolo a face no asfalto do pátio, e lá estão o rosto inchadoe os olhos pequenos e sem vida a 2 centímetros dos meus.Noventa e nove. Falhei por uma. Aquele maldito.- Cabo Zumbi, você é uma desgraça para a espécie. Já acabei com carasmais fortes do que você. Você me faz pensar que o inimigo está certo sobre araça humana. Você deveria ser jogado na lama de um chiqueiro! Ora, o que estáesperando, seu saco de vômito? A droga de um convite?Viro a cabeça para o lado. "Um convite seria bom, obrigado, senhor." Vejouma garota com aproximadamente a minha idade parada com seu esquadrão,braços cruzados sobre o peito, sacudindo a cabeça para mim. "Pobre Zumbi."Ela não está sorrindo. Olhos e cabelos escuros, pele tão clara que parece brilharna luz do início da manhã. Tenho a sensação de que a conheço de algum lugar,embora seja a primeira vez que me lembro de vê-la. Há centenas de criançassendo treinadas para a guerra e outras centenas chegando todos os dias,recebendo trajes de proteção azuis, designadas para os esquadrões, lotando osalojamentos que cercam o pátio. Mas ela tem o tipo de rosto inesquecível.
- Levante-se, seu verme! Levante-se e faça mais cem. Mais cem, ou, por Deus, vou arrancar seus olhos e pendurá-los no meu retrovisor!
Estou completamente exausto. Acho que não tenho forças nem mesmo para mais uma. Reznik não dá a mínima para o que eu penso. Esse foi outro detalhe que demorei a compreender. Eles não só não se importam com o que penso: eles não querem que eu pense. O rosto dele está tão próximo ao meu que posso sentir seu hálito. Cheiro de hortelã.
- O que foi, meu doce? Está cansado? Quer tirar um cochilinho?
Será que ainda há uma flexão dentro de mim? Se eu conseguir fazer pelo menos mais uma, não vou me sentir um fracasso total. Pressiono a testa deencontro ao asfalto e fecho os olhos, Existe um lugar a que vou, um espaço que encontrei dentro de mim depois que o comandante Vosch me mostrou o campo de batalha final, um centro de total silêncio que não é afetado pela fadiga, ou pela desesperança, ou pela raiva, ou por qualquer coisa criada com a chegada do Grande Olho Verde no Céu, Nesse lugar, não tenho nome. Não sou Ben, nem Zumbi, apenas sou. Inteiro, intocável, intacto. A última pessoa viva 110 universo que contém todo 0 potencial humano, incluindo 0 potencial de dar ao maior idiotada Terra somente mais uma flexão. E é o que faço.

A 5ª OndaOnde histórias criam vida. Descubra agora