IV - A efemérida

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Se considerarmos formas de morrer, morrer congelado não é tão ruim assim .
É o que penso, enquanto congelo até a morte.
Uma sensação de calor percorre meu corpo todo. Não há dor, nenhuma, mesmo. Você se sente flutuar, como se tivesse engolido todo um frasco de xarope para tosse. O mundo branco o envolve com seus braços brancos e o leva para baixo, na direção de um mar branco e congelado.
E o silêncio é tão — merda — silencioso, que o bater do coração é o único som no universo. Tão quieto, que meus pensamentos emitem um som sussurrante no ar gélido e pesado.
Com neve até a cintura sob o céu sem nuvens, a massa gelada mantendo-me de pé, porque as pernas já não o conseguem fazer.
E digo para mim mesma "Estou viva, estou morta, estou viva, estou morta."
E lá vem aquele maldito urso com seus grandes olhos castanhos, vazios e assustadores, observando-me de seu poleiro na mochila, dizendo "Seu grande pedaço de merda, você prometeu."
Tão frio que as lágrimas congelam no rosto.
— Não é minha culpa — eu disse ao Urso. — Não cuido do tempo. Se tem alguma reclamação, fale com Deus.
Isso é o que venho fazendo com frequência ultimamente: falando com Deus.
Assim como "Deus, *@#*?"
Poupada pelo Olho para que pudesse matar o Soldado do Crucifixo. Salva do Silenciador para que minha perna pudesse se infeccionar, tornando cada passo uma jornada pela estrada do inferno. Manteve-me prosseguindo até a nevasca cair durante dois dias inteiros, encurralando-me nessa massa na altura da cintura para eu morrer de hipotermia, sob um glorioso céu azul.
"Obrigada, Deus."
Poupada, salva, mantida viva" diz o urso. "Obrigada, Deus."
"Na verdade, não importa muito", penso. Aborreci tanto o meu pai por ser tão agressivo em relação aos Outros, e por torcer os fatos para que parecessem menos tristes, mas, na verdade, não me sentia muito melhor do que ele. Era simplesmente muito difícil engolir a ideia de que eu tinha ido dormir como um ser humano e acordado na forma de barata. Ser um inseto nojento transmissor de doenças com um cérebro do tamanho da cabeça de um alfinete não é algo com que se lida facilmente. Leva tempo para se acostumar com a ideia.
E o urso continua "Você sabia que uma barata pode viver até uma semana sem a cabeça?"
"É. Aprendi isso na aula de Bio. Então, você quer dizer que minha situação é um pouco pior do que a de uma barata. Obrigada. Vou pensar exatamente em que tipo de doença eu saio transmitindo por aí."
Então me ocorre. Talvez esse seja o motivo pelo qual o Silenciador na rodovia me deixou viver: borrife o inseto, afaste-se. Você precisa mesmo ficar por perto, enquanto ele vira de costas e agita as seis patinhas finas no ar?
Ficar debaixo do Buick, correr, defender seu território... O que importava? Ficar, correr, enfrentar, sei lá. O dano estava feito. A minha perna não iria sarar sozinha. O primeiro tiro tinha sido uma sentença de morte. Por que, então, desperdiçar mais balas?
Escapei à nevasca no porta-malas de um Explorer.  Abaixei o banco, fiz uma cabana de metal aconchegante, de onde via o mundo ficar branco, incapaz de abrir as janelas para deixar entrar ar fresco, de modo que o veículo rapidamente foi dominado pelo cheiro de sangue e do meu ferimento infeccionado.

Usei todos os analgésicos do meu estoque nas primeiras dez horas. Comi o resto dos alimentos até o fim do primeiro dia no utilitário.
Quando senti sede, abri um pouco a porta dos fundos e apanhei punhados de neve. Deixei a porta aberta para ter ar fresco — até  meus dentes baterem  e minha respiração se transformar em blocos de gelo diante de meus olhos.
Na tarde do Dia Dois, a neve chegara a quase um metro de altura, e minha pequena cabana de metal começou a parecer mais um sarcófago do que um refúgio. Os dias eram apenas dois watts mais claros do que as noites, e as noites eram a negação da luz — não escuras, mas absolutamente sem claridade. "Então, é assim que os mortos veem o mundo", pensei.
Parei de me preocupar com o motivo de o Silenciador ter me deixado viver. Parei de me preocupar com a sensação muito estranha de ter dois corações, um no peito e outro, menor, um mini coração, no joelho. Parei de me preocupar com o fato de a neve parar de cair antes de meus dois corações pararem de bater.
Não consegui dormir, exatamente. Flutuei naquele espaço transitório, abraçando Urso contra o peito. Urso, que conservava os olhos abertos, enquanto eu não conseguia. Urso, que me lembrava da promessa de Sammy: "para você, quando sentir medo", estando ali para me apoiar naquele espaço transitório entre o dormir e o despertar.
"Hum , falando em promessas, Cassie..."
Devo ter me desculpado com ele milhares de vezes durante aqueles dois dias envoltos de neve. "Sinto muito, Sams. Eu disse que faria de tudo, mas você é muito jovem para entender que existe mais de um tipo de merda. Existem as bobagens que você sabe que sabe; as bobagens que você não sabe, e sabe que não sabe; e as bobagens que você acha que sabe, mas, na verdade, não sabe mesmo. Fazer uma promessa no meio de um ataque alienígena se insere na última categoria. Portanto... sinto muito!" "Sinto muito, mesmo."
Agora, um dia depois, até a cintura num monte de neve, Cassie, a donzela de gelo, com uma elegante touca feita de neve, cabelos congelados e pestanas incrustadas de gelo, toda quente e  flutuante, morrendo aos poucos, mas, pelo menos, morrendo em pé, tentando cumprir uma promessa que não sabia como cumprir.
"Sinto muito, Sams, sinto muito." "Chega de bobagem. Não vou chegar."

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