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Se em meus tempos de garoto, você me dissesse que os mortos voltariam durante a noite para puxar meu pé enquanto eu estivesse dormindo, eu riria de sua cara e te acharia um pateta. É, eu sei que isso soa diferente, e que a maioria das crianças ficaria apavorada só de ouvir qualquer coisa do tipo, mas não era o meu caso.

Meu nome é Artur Chagas, e eu fui criado, como dizem, nestas cidadezinhas empoeiradas do interior, mas a minha família não era, por assim dizer, uma típica família interiorana. O meu pai, seu Ramon para os peões, era um darwiniano irremediável. Ele me ensinou desde criança que, sim, "do pó viemos e ao pó voltaremos" , mas que tudo terminava ali mesmo. Um gigantesco acidente em uma imensa sopa de nitrogênio, amônia, hidrogênio, metano e água. A Sopa Primordial.

Papai adorava ler, principalmente artigos científicos, mas a primeira impressão que você teria dele - com aquele chapéu, botas pontudas de vaqueiro e seus suspensórios com fivelas douradas - era a de um caipira, porém, bastaria o homem abrir a boca para qualquer um notar que o velho era um nerd. Dona Clarisse, minha mãe, era de família católica, contudo não me lembro uma vez sequer dela me falar sobre Jesus Cristo e toda aquela coisa transcendental de anjos e universos paralelos, com almas queimando eternamente como alguns dizem estar escrito no livro sagrado. Quando muito ela montava um presépio embaixo da árvore que ficava no canto da sala durante as noites de natal.

Uma de minhas memórias mais marcantes desse período é a de papai me cutucando e falando baixinho no ouvido "Tá vendo aquele bebezinho ali deitado de braços abertos com todos aqueles bonequinhos ao redor dele?" Eu fazia que sim com a cabeça, devia ter uns oito anos, não muito mais que isso "Não deixe que te digam o contrário, pois ele é só isso mesmo, um bebezinho numa manjedoura. Não vale todo nosso calendário gregoriano". Isso tudo ocorreu antes de nos mudarmos para Sombreado quando eu já era um adolescente. Depois de Sombreado, tudo o que sabíamos ou que achávamos que sabíamos, mudaria para sempre.

Meu pai era funcionário em uma grande empresa de mineração, então, onde quer que precisassem dele, é para lá que iríamos. Ele era um blaster, o responsável pela organização, distribuição e disposição dos explosivos e acessórios empregados no desmonte das rochas. O cara que explodia as coisas.

Quando nos mudamos para Sombreado, a cidade — e chamar aquele vilarejo de cidade é um baita elogio — tinha uma população que não chegava a 1.000 habitantes. Você só encontraria registros do lugar se tivesse em mãos a versão atualizada do mapa de 1972. Foi nessa época que inseriram um pontinho amarelo paralelo àquele risco comprido e irregular representando o rio Cumaru, entre o nada e o lugar nenhum, com Sombreado escrito em itálico ao lado.

Sombreado nasceu e existiu apenas por conta da mineradora, ficava bem no centro de um vale, cercada por montanhas e colinas. O sol mal batia sobre aquele lugar e, às quatro da tarde, já começava a escurecer. Havia também um prostíbulo, como em todos os lugarzinhos iguais aquele, quase à entrada do Complexo do Cumaru - que é como chamavam a mina. Me lembro bem dos Caterpillar com pneus do tamanho de uma casa trafegando junto com os tratores e os caminhões cheios de rochas. Minhas memórias quase sempre têm o tom sépia do ar empoeirado que atacava a rinite da mamãe

Eu tinha 15 anos e os hormônios fervendo como água em uma bacia em ebulição, mas era careta ou covarde o bastante para nunca pagar uma prostituta. Até hoje não sei exatamente se isso é algo para se orgulhar ou envergonhar. Foi em um domingo sem nada para fazer que meu pai resolveu dar um churrasco no quintal de casa para seus subordinados.

Os homens bebiam cerveja e comiam a carne pingando na churrasqueira. Mamãe, como sempre, esquentava o ventre no fogão preparando arroz, feijão e farofa de abóbora para a tropa de pés de serra, que era como ela se referia àqueles caras. Nesta tarde duas coisas extraordinárias aconteceriam: a primeira e mais importante seria conhecer a Helen, filha do senhor Matheus Herrera, o capataz.

O senhor Herrera era viúvo, tinha traços latinos que a filha, Helen, de 17 anos — dois a mais que eu – herdara. Helen tinha cabelos encaracolados e volumosos que batiam abaixo dos ombros, seus olhos eram grandes e astutos como os de uma coruja. Com ela eu traguei meu primeiro cigarro de maconha e dei o meu primeiro beijo. São boas memórias, sabe Deus.

A segunda coisa impressionante foi o velho Pessoa nos contar sobre um antigo vilarejo que ficava bem ali mesmo. A Vila do Escondido. Ele dizia que a tal vila fora fundada em um terreno ainda mais fundo do que o vale de Sombreado. Dentro de uma cratera. A própria cratera que se abrira com a queda de satanás e seus demônios ao serem lançados à terra pelo Arcanjo Miguel e seus anjos após a rebelião celestial. Uma velha vila amaldiçoada que acabou submersa quando a antiga represa se rompeu.

O velho Pessoa nos falou um pouco dessa história, entre um copo e outro de aguardente e algumas baforadas em seu cigarro Continental. Os rapazes riam e meu pai olhava pra mim, de minuto a minuto, com aquele seu sorriso cético no canto da boca. O velho Pessoa não ria, pelo contrário, qualquer um com um pouco mais de sensibilidade notaria o desprezo no rosto do homem. O típico olhar de "Seus ingênuos idiotas que não sabem porcaria nenhuma e se acham os sabichões". E eu acho que era isso mesmo o que ele pensava.

Pessoa tinha sabe lá Deus quantos anos, mas certamente beirava a um século. O velho possuía uma volumosa barba branca e um enorme rosto arredondado. Sua pele era pálida e fantasmagórica como um espectro. Os cabelos no topo da cabeça já se haviam ido há tempos e seus olhos eram fundos e azuis como uma madrugada azul escura. O velho dizia ter aprendido alguma coisa de medicina com o sogro anos atrás, inclusive provara seu valor dando um ponto ou outro caso alguém se acidentasse em Sombreado e o plantonista não estivesse por ali. Por essas ele costumava auxiliar no ambulatório, noutras fazia as vezes de chefe da cozinha, mas entenda chefe da cozinha como alguém encarregado apenas de garantir que haveriam panelas de arroz, feijão, macarrão, bifes e ovos fritos o suficiente para alimentar os peões.

O que se dizia era que Pessoa já estava poraquelas bandas quando a Mineradora chegou. Antes de Sombreado e o Lago SemNome, no meio do Complexo, sequer existirem. 

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