VII Verão de 1972

17 7 23
                                    

Helen tinha razão, seu pai estava mesmo vivo. Um milagre. Todo mundo acreditou nisso.

O senhor Matheus Herrera não sabia explicar o que ocorrera, e quem poderia exigir uma explicação? O homem pouco se lembrava das coisas, quem era sua filha ou mesmo o próprio nome. A coisa despertava de um sono profundo.

Dezesseis anos.

Hoje eu sei que ela penetrava lentamente nas memórias mortas de Herrera.

O médico do complexo nos disse que aquele estado de desarranjo era normal. Chamava-se amnésia pós-traumática. Um estado transitório de confusão e desorientação. Ele poderia sofrer de distúrbios de comportamento, insônia, agitação psicomotora, fadiga, confabulação e, ocasionalmente, sérios sintomas afetivos e psicóticos.

Era o que nós críamos, pois era exatamente isso o que Helen dizia estar ocorrendo com seu pai. Durante a noite, dizia ela, ele andava pela casa e ria sozinho, dizia coisas sem sentido ou se trancava no quarto falando palavras ininteligíveis.

Todos foram visitá-lo, exceto o velho George Pessoa. Meu pai notara a ausência do homem e foi procurá-lo. Eu, claro, fui com ele até a casa do velho Pessoa.

A porta estava trancada e as cortinas fechadas, meu pai achou aquilo estranho. Seu olhar de preocupação era notável. Dava pra ler em seus olhos o que ele achava; que o velho tinha morrido dormindo durante a noite e, nenhum de nós, miseráveis, tinha se preocupado em ir averiguar até então, de tão focados que estávamos em Matheus Herrera.

Meu pai esmurrou a porta ansioso, quase a arrombando até que finalmente ouvimos um barulho. E era o de uma arma sendo engatilhada.

— Se for você, seu miserável – respondeu o velho Pessoa com a voz mais firme que ele jamais emitira por aquela garganta encharcada de aguardente — saiba que há dezesseis anos eu espero te reencontrar, ghá, e dessa vez eu vou te benzer o coração com bala quentinha, quentinha, saídas direto de minha benzedeira calibre doze.

— É o Ramon, seu velho maluco. Não atire, eu estou com o meu filho.

Por uns dois segundos, que pareceram bem mais que isso naquele momento, o velho ficou em silêncio.

— Tem mais alguém aí com vocês, seu Ramon? – Respondeu enfim.

— Somos só eu e ele.

George Pessoa abriu a porta empunhando sua espingarda. Seu olhar desconfiado perscrutou cada centímetro atrás de nós.

— Entrem logo de uma vez – Seu tom era de quem dava uma ordem, com certeza meu pai achou melhor obedecer. Nós entramos e ele trancou a porta novamente.

— O que deu em você, velho? – Perguntou meu pai.

— Seu Ramon, vou lhe dar um conselho. Pegue sua família, coloque todos dentro daquele helicóptero no topo dos escritórios e caia logo fora daqui.

— Do que você está falando?

— O exército dos mortos vai se ajuntar de novo e hoje a situação é diferente, talvez irreversível.

— Olha, velho, se você continuar bebendo e dizendo essas bobagens eu serei obrigado a lhe demitir, você entendeu?

— Não se preocupe com isso, seu Ramon – Pessoa retirou o crachá de um dos bolsos do macacão e o jogou quebrado sobre a mesa – eu mesmo me demito.

— Mas o que é que significa isso? - Perguntou meu pai.

George Pessoa se virou, tirou um revólver da cintura e o entregou pra mim.

— Olha, filho, se as coisas forem como no passado, a sua namorada ainda está bem. É assim que eles fazem. Os de casa são os últimos, mas ela não tem muito tempo, ghá. Faça uma coisa para não se arrepender depois como eu me arrependi. Tire logo ela daqui.

— Você está maluco, velho? – Meu pai o empurrou e Pessoa caiu sobre o sofá. – Você está entregando uma arma para o meu filho?

— Hoje fazem três dias que o mal retornou a este lugar, ghá! – Esbravejou Pessoa sóbrio como eu poucas vezes o vira fora do trabalho. – Alguém vai morrer esta noite e depois irá retornar, e outro irá morrer e retornar e assim por diante. Se você ama sua família, não ignore os sinais. Pois eles serão claros como o sol que nunca bate aqui neste lugar maldito.

Meu pai tomou a arma de mim e a colocou sobre a mesa.

— Vamos embora daqui o velho enlouqueceu. – Disse ele se virando e saindo pela porta.

George Pessoa me encarou como se enxergasse minha alma, suas pupilas mergulhavam em seus olhos fundos e graves. Ele apontou o revólver e comprimiu os lábios antes de sussurrar pra mim.

— Acerte o coração dos filhos da puta, garoto. Bem no coração!

Peguei o revólver e o enfiei nas costas por debaixo da minha camiseta, depois saí atrás de meu pai.

SombreadoOnde histórias criam vida. Descubra agora