VIII Outono de 1956 - 16 anos antes.

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Nós só podemos ter enlouquecido! – A testa do chefe responsável pelas comportas da represa do Cumaru, Lucas Linus, escorria suor. – Como nós vamos justificar essa loucura?

— Se não abrirmos as comportas, em breve a única coisa que você vai tentar justificar serão seus pecados aos pés do criador, você me entendeu? – Gritou George.

Lucas respirou profundamente e apertou alguns botões no painel.

A sirene longa e aguda começou a tocar e as luzes de emergência se acenderam. A primeira das cinco comportas começou a se abrir liberando as águas.

No topo da represa o doutor Rubinson fumava seu cigarro Continental e observava a estrada com um binóculo.

Rubinson chegara a Escondido após uma série de diagnósticos errados custarem a vida de dois pacientes, incluindo uma criança de pouco mais de 5 anos.

O pai do garoto invadiu o consultório de Rubinson com uma arma na cintura, mas o doutor não estava lá. Apenas sua esposa — uma artista plástica amadora com um quadro novo de um vilarejo cercado por montanhas e uma igrejinha em destaque — se encontrava.

O homem não daria viagem perdida, certas intenções são como correspondências em um endereço errado – alguém sempre as recebe — e a matou com dois tiros no peito.

Depois disso o homem enfiou o cano da arma na própria boca e abriu um rombo no topo da cabeça manchando o quadro com sangue e alguns pedaços de seus miolos.

Rubinson se afundou no alcoolismo e fez o caminho até a Vila do Escondido com sua filha, Penny.

George e Penny se casaram e a felicidade da filha deu novo sentido à vida de Rubinson. Isso, mais o apoio de Pessoa, lhe deu a força necessária para que largasse a bebida e voltasse a clinicar em Escondido.

Acimas das comportas na represa aquela noite estavam Rubinson, Penny, Alice e quatro outros: Valquíria, uma enfermeira de meia idade que aplicara erroneamente uma dose fatal de medicação em uma mulher grávida antes de chegar à Vila; Jales, um jovem comerciante de bíblias que, assim como George, chegara a Vila do Escondido viajando a trabalho; Salomão, um apicultor que se mudara para a vila com o filho Dimas após a esposa falecer em decorrência de uma alergia a picadas de abelha, e Tobias, um ex-presidiário que chegou ao lugar tentando recomeçar a vida.

O exército dos mortos subia como em uma procissão macabra já quase alcançando a estrada da colina rumo a represa do Cumaru.

Centenas deles.

À frente o padre Rufus os liderava sob a névoa.

Rubinson apertou o botão em seu walkie-talkie e a estática apitou no aparelho dependurado na cintura de George.

— Abram logo todas as porcarias das comportas, ghá, ou os desgraçados vão alcançar a estrada e será tarde demais pra todos nós. – Disse a voz de Rubinson carregada de interferência.

George bateu com as mãos nos ombros de Lucas.

— Você ouviu o doutor, é melhor acelerar logo o processo. Se eles alcançarem a estrada antes da água chegar até lá, nossas esperanças acabam.

— Se eu abrir todas de uma vez a barreira vai se romper, a porcaria não vai aguentar – disse Lucas.

A estática apitou novamente no walkie de George, era o doutor outra vez.

— George, não vai dar certo, ghá, eu já posso ver o desgraçado do Rufus carregando um crucifixo como se estivesse comandando uma cruzada. Eles estão avançando muito rápido.

— Saia daí de cima, tá me ouvindo? – Respondeu George – Tire todo mundo daí de cima e venham aqui pra dentro.

— Okay! – Rubinson fez sinal para os outros – Vamos sair daqui. Todo mundo. Agora!

Na sala de controle Lucas olhou temeroso para George.

— Você não vai fazer isso, vai?

— Você pode apostar que vou sim!

George avançou sobre as alavancas no painel e empurrou todas as cinco para cima de uma vez.

A represa tremeu como se um terremoto atingisse a região.

As comportas se chacoalharam sob os pés de Rubinson e ele deixou os binóculos caírem desaparecendo sob as águas. Alice se agarrou no corrimão de ferro e Penny gritou chamando todos rumo a sala de máquinas.

As águas jorravam encosta abaixo como um tsunami em uma onda ensurdecedora de lama e cascalho.

Seguindo a procissão de cadáveres ao longe, Rosita sentiu o tremor atemorizante e letal arrastando rochas, árvores e a terra negra circundando a represa. A velha-coisa arreganhou sua boca até que seus maxilares quase tocassem seu peito e correu, saltitando como uma aranha. Rufus, Lamar e agora Claus a seguiram pulando sobre as rochas. O exército de mortos que ainda marchava para fora dos limites da cidade tentava fazer o mesmo.

A torrente quebrou no sopé da colina, à entrada de Escondido, e arrebentou sobre uma turba de coisas mortas-vivas as arrastando em uma avalanche de carne, ossos e sangue. A senhora Pétrica Vanderlou, esposa de Jubileu Morgan, saltou sobre um telhado seguida por ele em seu chapéu panamá.

A onda escura atulhada de cadáveres e destroços dividiu-se ao meio como uma língua de serpente ao atingir a velha igreja. A torre do sino tombou e o grande crucifixo de aço no topo desabou sobre a velha senhora Vanderlou partindo seu corpo ao meio. O telhado esfarelou-se e o impacto das águas decapitou Morgan. Seu chapéu panamá submergiu junto com seus restos.

A outra metade da onda negra e mortal devorou o restante da multidão de mortos.

A água atingiu as casas e os corpos possuídos com toda sua força. O cadáver de Claus Von Berg e Lamar foram engolidos pelas águas. Para sempre.

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