XII Dias Atuais

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Artur Chagas apoiou-se sobre o púlpito, folheou algumas páginas de um livro negro e o fechou encarando de volta a multidão. As câmeras o focaram e seu olhar profundo preencheu os telões ao redor do palco. Artur vestia sua éfode sacerdotal. A veste era púrpura e seus cabelos já estavam embranquecidos pelos anos. Atrás de si, sentados em vestes brancas, estavam Tobias, Alice e Penny. Todos idosos de cabelos prateados. Uma primeira pessoa se levantou no público e começou a aplaudir, os demais fizeram o mesmo e seguiu-se então uma longa e entusiasmada salva de palmas.

— Quando saí naquele helicóptero, irmãos e irmãs. – Artur deixou o púlpito e pôs-se a caminhar pelo palco segurando o queixo com o polegar e o indicador contornando os lábios como se refletisse. A multidão em pé voltava lentamente a se sentar.

— Quando pousamos de volta à nossa segurança, na cidade, longe de toda aquela experiência de encontro com o sobrenatural. Vi que éramos todos pessoas diferentes. O irmão George Pessoa. Eu posso ouvir uma salva de palmas para o mestre George? – A multidão aplaudiu e uma imagem de George sentado em uma poltrona lendo um livro surgiu nos telões. – O mestre George foi quem nos apresentou a verdade, mas, primeiro, ele teve que absorvê-la. Ele teve que pegar tudo aquilo que viveu e transformar conhecimento em iluminação.

Artur alternava a voz em um tom suave — como um copo matinal de leite morno — e o autoritário, porém amoroso, tom paternal.

Ele continuava:

— Deixem-me explicar para vocês, crianças. Quando aquilo o que transcende se projeta em nós, como ocorreu com o apóstolo Paulo, primeiro perdendo a visão para só então, vejam vocês, aprender a enxergar com os incorruptíveis olhos do espírito. Quando isso ocorre, você deixa de ser quem você é. Há uma revelação. Levante a mão quem está me entendendo.


— Você deixa de ser aquele ser. Você renasce. Mas para renascer, antes é preciso matar o ego. O seu velho eu. Este precisa partir e dar lugar a um novo você. Aquele que vive dentro de cada um de nós. – Artur proferiu pausadamente as últimas quatro palavras apontando para o público. Prosseguiu:

— Naquele distante 1956, naquela pequena Vila erguida nos fundos de uma cratera, foi lá, irmãos e irmãs, naquele lugarzinho esquecido por Deus que o entendimento veio finalmente à luz. Mas que entendimento? Alguns de vocês talvez se perguntem. O entendimento de que a morte, irmãos e irmãs, a morte é uma mera ilusão. A serpente já nos dizia, ela disse aos nossos pais primordiais, que se comêssemos da fruta do conhecimento do bem e do mal, nós não morreríamos. A serpente, o Rá e o Áton. Aquele que termina ou aperfeiçoa. Ladão, o guardião da árvore do Jardim das Hespérides. Tudo o que foi dito depois é mentira. Só há uma verdade: a de que somos imortais.

Mais uma salva de palmas e Artur fez sinal para que não se delongassem.

— Quando voltamos do purgatório, que na verdade é o que Sombreado era, um purgatório. Quando voltamos, o mestre George reencontrou aqueles que amava e que hoje estão aqui. Uma salva de palmas para os irmãos Tobias Ruiz, Alice Derwon e Penny Pessoa.

Todos aplaudiram efusivamente. Penny, de cabelos prateados quase até a cintura se levantou e caminhou firmemente, a despeito da idade que aparentava, até o púlpito. Ajeitou seu microfone e olhou para a plateia com autoridade.

— George foi meu marido. – Penny sugou o lábio inferior, assentiu com a cabeça e seus olhos brilharam. — Ele foi um homem muito especial. Quando nos reencontramos, depois de tantos anos, foi o dia mais emocionante de toda minha vida. George era um homem forte e iluminado, ele compreendeu tudo aquilo que para nós era o mais completo absurdo, filtrou e nos mostrou a verdade. George foi o purificador. Esta é a definição. Um filtro que transformou dor, remorso e morte em conhecimento que leva a vida. Por isso hoje, mais uma vez, estamos aqui trazendo essa verdade até vocês. Trazendo a palavra de fé, a mesma fé que salvou o senhor Ramon Chagas, a mesma fé que nos trouxe todos até aqui. Hoje já não há mais o Escondido, o nosso reino é o Absoluto. É chegada a hora, irmãos e irmãs, hora de renascermos. É o batismo dos novos convertidos.

As pessoas se levantaram e aplaudiram uma vez mais enquanto uma equipe de assistentes se organizava para conduzi-los aos fundos do templo.

Uma enorme fila se formou em um pátio coberto frente a uma enorme cortina branca. A cortina se abriu e revelou a grande piscina redonda. Artur Chagas estava no meio, a água o banhava até a cintura.

— Aqui vocês renascem para uma nova vida – sua voz ecoava de forma que todos podiam ouvi-lo — Uma vida de glória e luz. Entreguem-se de espírito e verdade.

Helen, também com longos e cabelos grisalhos, estava à beira de uma pequena escadaria auxiliando os fiéis. O primeiro a entrar foi um homem de meia idade se apoiando em um par de muletas. As cortinas se fech4aram logo que o homem tocou a água. Um assistente o conduziu até Artur que o segurou no topo da cabeça.

— Entregas tu, filhinho, tua alma ao Absoluto, para que morras e renasça na Glória?

— Sim! – Exclamou o homem.

A multidão ouvindo do outro lado da cortina, aplaudiu entusiasmada.

Artur o mergulhou na piscina e o segurou. O homem ficou quieto por alguns instantes e depois tentou se levantar. Artur o manteve submerso com firmeza, era surpreendentemente forte para a idade. O homem se debateu, as bolhas de ar subiam e estouravam na superfície. Artur o manteve submerso até as bolhas cessarem e o homem se aquietar, então o puxou de volta e ergueu um braço bradando com autoridade.

— Venha para a glória!

O homem abriu os olhos vazios e se levantou sem o auxílio de muletas.

As cortinas se abriram e as pessoas aplaudiram outra vez.

O próximo fiel entrou na piscina e Helen fechou as cortinas uma vez mais.

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