II Outono de 1956 - 16 anos antes.

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A mão morta do padre Rufus esmurrou a madeira maciça da entrada da igreja por três vezes. O som ecoou fantasmagórico pela nave e Alice apertou a pele fina e manchada pela idade dos pulsos de Claus Von Berg.

— Por que continuam vós a resistires? — Insistiu a voz do lado de fora. — O pai quer apenas o vosso bem, filhinhos. – O timbre era rouco e cansado e o tom cínico e perverso. A voz afável e confidente que padre Rufus possuía, desaparecera. Fora substituída pela voz cadavérica e esmigalhada sob o pescoço tão roxo quanto os fundos de uma garrafa de vinho bourbon. A corda com a qual ele se dependurara era agora o cíngulo enlaçando a cintura em suas vestes sacerdotais.

Claus virou-se para Alice.

— Talvez não seja assim tão mal, talvez o melhor seja nos entregarmos de boa vontade, abrirmos logo a porta e fazermos o que eles mandarem.

Claus era tão branco e loiro quanto sua ascendência alemã poderia justificar. Trajava seu paletó pentecostal preto e apoiava-se em uma bengala.

Alice tinha os cabelos claros amarrados com um elástico pouco abaixo dos ombros e grandes olhos acinzentados. Completaria 22 anos na semana seguinte. Chegara a Vila do Escondido após seu primeiro namorado a obrigar a abortar com um composto de ervas fortes. Seu corpo não expeliu completamente o feto, o que desenvolveu em Alice uma infecção pélvica aguda que quase a matou. Ela ainda estava no hospital quando seu pai, um irlandês ultraconservador, soube de tudo e disse que ela não deveria mais voltar pra casa.

O resto foram promessas falsas e mãos fedendo a uísque e nicotina apertando seus seios e coxas enquanto enfiavam notas amassadas nas alças de sua lingerie. O caminho perfeito até Escondido.

— Eles não são mais eles mesmos. – Dizia ela. — Acredite em mim, senhor Claus.

Ele suspirou...

— Sabe, mocinha, muitas coisas maravilhosas acontecem aqui em Escondido e você com certeza já deve ter presenciado algumas delas. Minha esposa, Rosita, ela jogou fora sua cadeira de rodas e corre como se tivesse vinte anos outra vez e, Deus do céu, isso após um derrame.

— Aquela coisa não é mais a dona Rosita, é apenas satanás usando seu cadáver como fez com a cobra no Jardim. Jesus Cristo! Eu a vi cortando a garganta do senhor Lamar.

Claus cerrou o cenho.

— Essa pessoa a quem você se refere como coisa ainda é a minha Rosita, ouviu? A minha Rosita! Não se esqueça disso, mocinha.

— Dona Rosita agora descansa no Senhor e dizer que essa – Alice levou as mãos feito tarântulas próximas ao rosto – coisa é ela, é desrespeitoso. Isso saltou atrás de mim se dependurando nas paredes feito uma aranha, se não fosse o pobre senhor Lamar intervir... – dois riscos lacrimosos escorreram de seus olhos até o queixo e os lábios de Alice se comprimiram.

Outra vez a mão morta esmurrou a porta, desta, apenas uma vez. Era Rosita.

O coração de Alice subiu do peito à garganta com o som agoniante do cadáver arranhando a madeira com as unhas enquanto as farpas penetravam a pele sob elas.

— Claus, meu amor – clamou a falecida Rosita expelindo o ar fétido de seus pulmões mortos – Abra a porta!

Alice segurou Claus pelos ombros desta vez.

— Não é – ela o encarou firmemente – sua esposa.

— Claus, serás tudo tão melhor, meu amor. – Repetiu o cadáver.

— Ah, Rosita... – Disse ele marejando os olhos.

Alice insistia.

— Ela abriu a garganta do senhor Lamar como se não fosse nada, dava pra ver a espinha dele, senhor Claus.

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