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Eu aposto que você desejaria não ter tocado nele.
Vi o dia nascer sentado na poltrona que fica ao lado do berço da nossa filha, noto o sol subir quando os primeiros raios de luz invadem o pequeno cômodo pintado de branco e azul celeste decorado com detalhes dourados. Lara nunca gostou de seguir padrões e o quarto da nossa filha foi decorado da maneira mais neutra que ela conseguiu, o quarto de uma princesa. Minha cabeça está recostada nas costas da poltrona e meu antebraço cobre meus olhos e eu não mudo de posição mesmo após ouvir o clique da fechadura e sentir seu perfume invadir meu olfato. Minhas pernas estavam afastadas no que eu chamo de posição mais confortável possível na poltrona que foi desenvolvida especialmente para Lara amamentar a Maria Eduarda. Ouço seus passos cada vez mais perto e quando Duda resmunga no berço eu tiro imediatamente o braço dos olhos e me viro em direção ao berço e vejo minha filha ainda dormindo depois de reclamar durante seu sono.
Seus olhos encontram os meus e ela parece bem para quem bebeu e chegou em casa tão tarde. Levo uma das minhas mãos até a nuca e aperto com força tentando desfazer o incomodo em meu pescoço, alongo de um lado para o outro e finalmente volto a olhar para ela quando ouço sua voz mais perto de um sussurro. "Eu preparei café, nós podemos deixar a babá eletrônica ligada, acho que ela não acorda agora de qualquer maneira". Meu olhar vai do rosto dela e desviamos ao mesmo tempo para olhar em direção ao corpo pequeno dentro do berço, dormindo tão alheia ao pesadelo que seus pais estão vivendo.
Depois de um tempo que pareceu mais longo do que realmente foi me levantei esticando o corpo e ouvindo meus ossos estalarem. "Você dormiu nessa poltrona Harry? A noite toda?" Passo as mãos no cabelo o jogando para trás dos ombros numa tentativa de melhorar a minha aparência de merda e olho em sua direção respondendo com uma indiferença não forçada e tenho certeza que ela sentiu. "Eu passei a noite na cadeira sim. Agora dormir? Nem tanto." Olhei em seus olhos que carregavam um pouco da tristeza que os meus refletiam.
Aposto que você deseja não ter tocado nele na noite passada, Lara.
Deixamos o quarto com a porta entreaberta e descemos as escadas juntos como praticamente em todos os dias desde que casamos e seguimos até a cozinha onde eu fiquei surpreso com a quantidade de comida pronta. Talvez eu não tenha sido o único a não dormir muito essa noite. Notando a minha hesitação ela começou a falar e eu poderia apostar que ela nem respirou. "Eu percebi que voce está mais magro e abatido então preparei um café mais reforçado". Ela aponta com o polegar indicando a mesa que está atrás dela. "Percebi". Foi tudo que consegui responder quando passei por ela e arrastei uma cadeira me jogando fazendo um som audível e por sobre o ombro a vi se encolher diante do meu comportamento estranho essa manhã.
Puxei um prato e me servi com um pouco de ovos mexidos e bacon e mesmo que eu não estivesse olhando diretamente para ela podia sentir seus movimentos ao meu redor e quando finalmente começou a me incomodar eu a olhei de lado e ela parou de andar. "Você não vai sentar?" Levantando o queixo indiquei a cadeira a minha frente no lugar onde ela costumava sentar para o café. "Eu imaginei que... eu não sabia se... bem eu não queira incomodar você". Descansei a jarra de suco de laranja na mesa e a encarei percebendo que ela ainda estava segurando um fio de receio. "Por mim tanto faz Lara, só acho que tem comida demais aqui, até mesmo para mim".
Mais uma estremecida.
Está se sentindo mal agora? Aposto que não se sente como eu. Acho que você gostaria de mudar isso agora não gostaria?
Ela deu a volta e sentou na cadeira em frente a minha e enquanto eu mastigava o mais devagar possível observei suas mãos trêmulas enquanto ela se servia de panquecas com uma dose generosa de melaço. Meus olhos desviaram do prato para ela surpreso com a quantidade de comida mas optei por ignorar, tendo passado o dia fora não imagino como ela se alimentou e não sei se tenho mais forças suficientes para me importar com ela nesse momento. Ao mesmo tempo que estou com raiva dela eu quero prolongar esse momento onde nós dois conseguimos coexistir no mesmo ambiente mesmo que fazendo a refeição mais silenciosa de nossas vidas.
Eu desejo que possamos mudar isso, Lara.
Meus pensamentos não param enquanto eu encaro a mulher que um dia eu achei que era o amor da minha vida, eu não sei mais o que eu penso sobre isso porque tudo que eu sinto é a distância que me foi imposta a cada maldito dia que passa. "Você vai trabalhar hoje?" Ela me arranca dos meus devaneios e eu sorvo um longo gole do suco de laranja e deixo o copo na mesa antes de levantar os olhos para ela novamente. "Não, eu vou levar Duda para um parque, fazer um programa pai e filha". Vejo ela pegar o bule e me servir uma xícara de café preto e levantar os olhos para mim. "Sozinhos?"
"Sim". Me limitei a dizer e ela derramou café sobre a mão que descansava ao lado da minha xícara. "Ai merda". Seus dedos ficaram imediatamente vermelhos e ela empurrou a cadeira para trás ao mesmo tempo que eu e correu para cozinha, eu estava em seu encalço porque eu posso estar com raiva mas eu juro que vi lágrimas em seus olhos. Não sei se porque vou sair com nossa filha sem ela ou por causa da queimadura em seus dedos. Cheguei a cozinha e ela estava com a mão enfiada debaixo da água corrente e fria. "Machucou muito? Me deixa ver". Ela não se virou para me olhar então eu parei ao seu lado, daqui eu podia aspirar seu cheiro e sentir o calor do seu corpo. "Não precisa". Sua voz tinha um tom duro mas estremecido, ela está se esforçando para não chorar então vou dar espaço.
"Eu vou lá em cima olhar a Duda". Ela balançou a cabeça concordando. " Obrigado pelo café". Mais uma balançada de cabeça, mas quando eu cheguei na escada não pude deixar de ouvir seu choro e me virei para trás para a ver segurando a borda da pia e com a cabeça baixa, seu corpo tremia com o impulso do choro.
Eu aposto que você deseja que a noite passada não tivesse acontecido, Lara.
