Rebeca - Mudança de Vida

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Fui uma filha de rua. Vou te contar o que me fez mudar de vida. Diariamente, ia ao mercado comprar o café da manhã: pinga. Este momento era o auge do dia. Escolhia a mais barata, passava pelo caixa, me dirigia até o comércio em frente ao mercado e bebia para anestesiar a minha dor. No dia cinco de março de 2014 tudo mudou. Uma jovem senhora, de cabelos grisalhos, me devolveu à vida ao comentar com a moça do caixa:

- Bom dia querida! Como você vai?

- Vou bem. E a senhora?

- Tudo em paz, graças a Deus. Você está sentindo esse cheiro de esgoto? Ou será que é de carne estragada? Não sei ao certo. Estou achando estranho. Frequento o mercado há anos e nunca senti esse mau cheiro. Chega a revirar o estômago. Um mercado não pode ter esse odor. Estou vendo no crachá que o seu nome é Marlene. Por gentileza, você pode pedir para chamarem o gerente?

- Senhora, não é cheiro de esgoto e nem de carne estragada. Esse cheiro forte vem daquela moça que está no caixa ao lado. Ela vem comprar bebida no mercado. Sempre com a mesma roupa e mau cheiro. O gerente, senhor Otávio, já tentou ajudá-la , chamou uma assistente social. Ela não quis nenhum auxílio, preferiu permanecer na rua.

- Só estou acreditando porque você está me dizendo... Estou constrangida por ter achado que era cheiro de esgoto. A pessoa que chega a esse ponto desistiu da vida. Deixou que a tristeza levasse embora a sua fé e esperança. É um corpo sem espírito, um zumbi. Pode haver coisa mais triste?

Não sei como consegui ouvir e entender a conversa. As duas tomaram o cuidado de falar num tom baixo. Seria difícil para qualquer um escutá-las, mas eu consegui ouvir em alto e bom som. Minha condição natural era estar drogada ou bêbada e, muitas vezes, a combinação das duas coisas. Ouvir e refletir sobre o significado daquele diálogo me fez despertar. Pela primeira vez, em anos, lembrei-me do meu nome, da minha história e do motivo que me levou a viver na rua.

Perdi a minha família num trágico acidente de carro no carnaval de 2005. Uma carreta perdeu o controle e atingiu o nosso veículo que vinha no sentido contrário. Meu esposo, Jairo, e meus dois filhos, Alana e Átila, morreram no momento da colisão. O carro teve perda total. Eu estava no banco do passageiro. Fui muito atingida: tive traumatismo craniano, fiquei entre a vida e a morte. Quando me recuperei, a minha irmã mais velha, Penina, e uma psicóloga vieram conversar comigo. Elas me contaram o que havia acontecido. Enquanto falavam, me desconectei da realidade, tudo parecia um pesadelo. Senti o meu espírito sair do corpo. Parecia que eu estava flutuando no ar como um balão sem direção. As vozes das duas foram sumindo aos poucos. Fiquei voando no céu por muito tempo me sentindo totalmente perdida e sozinha.

Retomei os sentidos e a consciência três dias depois. Minha irmã estava ao meu lado fazendo carinho nas minhas mãos. Quando ela percebeu que eu estava de volta, deu um largo sorriso e me abraçou com cuidado. Tudo doía: uma dor dilacerante na alma, do corpo e do coração. Ficamos em silêncio por muito tempo o que me deu um certo descanso. A pausa foi interrompida pela chegada da psicóloga. Senti um nó na garganta e um frio na barriga. A minha intuição gritava no sentido de que ainda tinha muito a ser revelado.

A psicóloga olhou bem nos meus olhos e disse:

- Rebeca você ficou inconsciente por três dias. Estávamos conversando sobre o acidente e a perda da sua família. A sua irmã ficou aqui todo esse tempo conversando contigo, lendo e cantando as suas músicas favoritas. Acredito no poder do amor de curar e de restabelecer vidas. Você é muito amada e tem uma família que está empenhada em acolhê-la neste momento de dor. Sei que é...

- Não, você não sabe o que é. Ninguém sabe o que estou passando. Nem nos meus piores pesadelos poderia imaginar tanta tragédia. Para um sofrimento como o que estou sentindo nenhuma terapia será eficiente, muito menos um papinho de alguns minutos envolvendo essa baboseira de autoajuda.

Filhos da RuaWhere stories live. Discover now