Denis: o palhaço Pé de Chinelo

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Era a última apresentação do circo Arco-íris. O dono do circo, senhor Nuno Abrantes, chamou os artistas no trailer e disse:

̶  Hoje é um grande dia! Nossa última e mais especial apresentação. Vamos nos dedicar de corpo e alma. O espetáculo só irá parar depois da apresentação que faremos daqui a poucos instantes.

O Tampinha, anão que faz dupla com o palhaço Pé de Chinelo, falou:

̶  Nasci neste circo. Faz cinquenta e nove anos que faço parte desta família. Não me imagino não sendo o Tampinha. Não sei quem é o Leon e confesso que talvez nunca saiba. É um nome que está na minha certidão de nascimento e que não tem significado algum para mim.

O Pé de Chinelo pegou o amigo no colo, como costumava fazer no circo, e os dois riram. A trapezista e o homem do globo da morte chegaram perto deles e todos se abraçaram.

̶  Ânimo, ânimo! O circo está nas nossas veias. A despedida tem que ser em grande estilo, ou seja, com muita alegria. Ela foi nosso combustível até hoje. Faz tempo que mal conseguimos o suficiente para comer. Lembram-se quantos artistas trabalhavam conosco? Agora somos cinco contando comigo.

̶  É verdade Nuno. Nós cinco iremos fazer o melhor espetáculo que a plateia, não importa de quantas pessoas, já viu. Eu e o Tampinha nos dedicaremos como nunca. Sei que a trapezista e o homem do globo da morte farão o mesmo.

̶  Pessoal, atenção, saindo do mundo mágico e visitando o mundo real, estou muito preocupado com o que acontecerá com vocês. Eu perdi tudo, todos sabem disso. Muitas vezes dividimos duas quentinhas de dez reais cada uma. Estamos aqui por amor ao circo. Infelizmente, precisamos de bem mais que isso para uma vida digna.

O trailer ficou menor do que realmente era. Era possível escutar a respiração de todos. Olhares preocupados se cruzavam. Na verdade, ninguém ali sabia o que fazer e nem para onde ir. A vida deles era dedicada ao que mais amavam: levar alegria e fantasia para as crianças e suas famílias.

A trapezista e o homem do globo da morte quebraram o silêncio e avisaram que iriam trabalhar com entregas de delivery de comida por aplicativo, utilizando bicicletas. Comentaram que pensaram em alguma ocupação para os amigos, mas não tiveram nenhuma ideia. A idade dos companheiros – todos com mais de sessenta anos e muito doentes: o Nuno com câncer de próstata, o Tampinha com diabetes e o Pé de Chinelo obeso e alcoólatra – era um fator bem limitante.

̶  Boa noite! Eu disse: Boaaaa Noiteeee! Parabenizo os presentes. Esta será a mais fantástica apresentação do circo Arco-íris. Acomodem-se nos seus lugares e aproveitem o espetáculo.

O Pé de Chinelo e o Tampinha fizeram uma apresentação maravilhosa. As três crianças da plateia se divertiram muito e foram convidadas para participarem das brincadeiras no palco. No último número deles pediram aos pais para tirarem uma foto dos cinco brincando juntos. É incrível como a lente pode captar o que, muitas vezes, os olhos não querem ver: por trás daquela alegria da dupla engraçada, existiam duas almas aflitas e totalmente perdidas.

O show do trapézio foi de tirar o fôlego. A beleza, graça e delicadeza dos movimentos lembrava uma bailarina no ar. As meninas pediram para os pais gravarem a apresentação e, no final, foram beijar a trapezista. Ela deu a tiara lilás que usava e os dois braceletes, na mesma cor, para as crianças.

O final do espetáculo foi marcado por uma apresentação barulhenta e muito perigosa do homem do globo da morte. A família presente aplaudiu de pé com entusiasmo. A entrada, há meses, era simbólica: cada pessoa dava o que podia. O casal, desempregado, levou uma travessa enorme de lasanha à bolonhesa e duas garrafas de dois litros de Guaraná Mineiro.

Filhos da RuaWhere stories live. Discover now