Meu nome é Ricardo, mas podem me chamar de Cacá. Nasci em 2002, em uma invasão, perto do lixão. Minha mãe, Raimunda, morreu ao dar à luz, devido às condições precárias de higiene. Meu pai, Reinaldo, foi quem fez o meu parto com a ajuda de uma vizinha. Até hoje acho graça quando ele me diz: "Cacá você nasceu sorrindo! Foi a sua alegria que me deu forças para superar a perda da sua mãe". Diariamente, pela manhã, ele me dava o bom dia falando essas palavras. Acordava com essa ingestão de ânimo e, nos dias de sorte, quando conseguíamos pegar os restos da Xepa, tínhamos frutas e suco para o café da manhã.
O meu pai é analfabeto funcional. Ele consegue ler e escrever com dificuldade. É um homem sábio, apesar das limitações intelectuais. Não foi à escola, e o pouco que aprendeu foi com a ajuda da minha mãe. Ela frequentou o colégio até a antiga quarta série. Parou de trabalhar para ajudar a minha avó que ficou viúva. Era a filha mais velha e cuidou dos cinco irmãos mais novos. Lavava e passava roupa para fora. Minha avó morreu logo depois do meu avô e ela virou arrimo de família. Criança ainda e sem condições de sustentar os irmãos, a rua foi a única opção para ela e sua família. Eles morreram, precocemente, devido às drogas e prostituição.
Foi no lixão que os meus pais se conheceram em 1998. Ficaram amigos e a amizade evoluiu para namoro. Os dois dividiam o pouco que tinham: uma barraca de camping, remendada com plásticos por todos os lados, uma panela sem cabo e um cobertor. Meu pai me conta que faziam tudo juntos. O dia deles começava bem cedo, por volta das quatro da manhã, e trabalhavam duro até o anoitecer. Os olhos dele ainda brilham quando fala da minha mãe. Sei que sente muita falta dela. Na carteira de couro surrada, que achou no lixão, tem uma foto dela apagada.
O lixão é perto de uma escola pública, a pé dá uns vinte minutos de caminhada. Ele me levava e buscava todos os dias. Era rigoroso com os deveres, estudos e frequência à escola. Participava das reuniões, entrega de boletins e conversava muito com as professoras e direção. Não podíamos pagar a APM (Associação de Pais e Mestres, espécie de mensalidade, voluntária, que os pais pagavam à escola para a manutenção e outras despesas) e o meu pai compensava a falta de recursos ajudando nos pequenos consertos, pintura e até limpeza do colégio.
O esforço do meu pai lhe rendeu bons frutos. Os pais viam as melhorias que ele estava fazendo na escola e muitos resolveram chamá-lo para fazer consertos domésticos, pinturas, lavagem de carro e outros pequenos serviços. Até que um dia, o meu professor o contratou para trabalhar no seu negócio de Marido de Aluguel. Ele fez uns cursos, se dedicou e continuou trabalhando com o professor de Matemática.
A atitude do meu pai mudou a nossa vida. A índole dele sempre me encorajou a enxergar a vida com os olhos da superação. Ele é o meu maior exemplo de vida. Tenho orgulho da história dele e do tanto que já cresceu e ainda irá progredir. Minha primeira casa na rua foi a barraca remendada, por lá ficamos cerca de quatro anos. Depois passamos para uma maior, de dois quartos, doação de uma mãe de um colega meu. Nos últimos oito anos, estamos morando no mesmo lugar, perto do lixão, numa invasão em um barraco construído com latas, papelões, resto de materiais recicláveis e isopor. Nós dois pegamos todo o material da nossa moradia no lixão. Ela é muito simples, pequena e acolhedora.
Sei que para muitos o lixão é o último lugar que gostariam de viver. Eu nasci nele e não sei se pretendo deixá-lo algum dia. Foi neste ambiente que tive acesso às cores e aos vários tipos de objetos recicláveis. Fico surpreso como as pessoas que têm mais recursos são aquelas que mais jogam fora tesouros. Ao longo dos anos reciclei muitas coisas que viraram objetos incríveis e personalizados: abajures, mesas, cadeiras, sofás e vários móveis antigos maravilhosos. A minha casa foi toda mobiliada com essas preciosidades. Não gastei nenhum tostão: usei as minhas mãos e a imaginação.
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Filhos da Rua
Short StoryLivro de contos tratando das experiências vividas por pessoas que escolheram a rua como sua morada. Cada um deles contará a vida de um personagem e os motivos que o levaram para a rua. A obra é formada por inúmeros contos que serão publicados uma...