Tomei o último gole de cachaça. Infelizmente, não foi o suficiente para me tirar da realidade. A movimentação na rua começa a diminuir. A maioria das pessoas está dormindo. Eu não durmo faz tempo. Hoje não é um dia fácil para mim. A data dois de setembro me faz estremecer. Foi o pior dia da minha vida e o da Adele, minha mulher. Faço de tudo para esquecê-lo, mas não tem um dia em que eu não pense nele e refaça mentalmente o que aconteceu. Tudo é tão real que tenho a sensação de estar vivendo o dois de setembro de 2016 todos os dias. É um verdadeiro pesadelo!
̶ E aí, Solano, tem algum bagulho para me oferecer?
̶ Não. O "Cheira Pó" faz um tempo que não passa por aqui.
̶ Será que a polícia deu um jeito nele?
̶ Acho difícil, Bola, é mais fácil ser briga interna. Ele e o comparsa viviam discutindo sobre divisão de lucros. Não estavam se entendendo muito bem.
̶ Que pena!
̶ Mas eu tenho cigarro. Aceita um?
̶ Pode ser. Não tenho nada mais interessante para fazer. Vou ficar aqui jogando conversa fora.
̶ Beleza.
̶ O que você tem feito? Mudou de atividade com o sumiço do "Cheira Pó"?
̶ Faz tempo que não mexo mais com isso. Há um ano a polícia não me pegou por um capricho do destino. Estou lavando uns carros e mendigando no sinal em frente ao hospital. E você, Bola, o que anda aprontando?
̶ Eu vou levando um dia depois do outro. Você me conhece, fico na vadiagem. Trabalho não é comigo. Eu estou baqueado, na semana passada, levei uma surra quando estava tirando um cochilo. Acordei no hospital. Não me lembro de nada do que aconteceu. Quase "bati as botas".
̶ Já levei muita surra, mas nunca parei no hospital. Embora, de uns tempos para cá, meus pensamentos estejam me deixando louco. No meu caso, um "sossega leão" não seria má ideia.
̶ Eu sempre achei você meio esquisito, mas biruta é um pouco demais.
̶ Não sei se chego a tanto. Isto só um psiquiatra poderia avaliar. ̶ Ele deu um sorriso sem graça.
̶ O que acha de eu me passar por um médico?
̶ O que, Bola? Você não convence nem como atendente de farmácia e quer fazer às vezes de psiquiatra?
̶ Tudo bem. Não está mais aqui quem falou. A minha intenção era a de ajudar.
̶ Bem, pensando melhor, a sua ideia pode ser boa. Estou mesmo precisando desabafar com alguém.
̶ Oba! Preciso de alguns minutos para incorporar o personagem. O nome do psiquiatra será Afonso. Não, não, muito simples. Já sei, já sei: o que acha de Lorenzo?
̶ Tanto faz. O nome pouco importa. Podemos começar com o atendimento?
̶ Boa noite, Senhor Solano do que?
̶ Solano Ribeiro.
̶ Senhor Solano Ribeiro, o que posso fazer para lhe ajudar?
̶ Não sei. O Doutor que deve me dizer o que pode fazer por mim.
̶ Pois não. O que lhe incomoda?
̶ Eu vivo, todos os dias, a data dois de setembro de 2016.
̶ Estou confuso. Hoje é o dia dois de setembro de 2019. Pode me explicar melhor?
̶ Pois é. Todo dia, para mim, é dois de setembro. Fico muito pior quando o dia e mês coincidem com a data da tragédia. É o quarto pior dia da minha vida (02/09/16, 02/09/17, 02/09/18 e 02/09/19). Todos os outros são muito ruins pelo fato de eu repeti-los, repeti-los e repeti-los. A minha cabeça só me deixa em paz quando estou viajando, se é que me entende?
̶ Sim. Entendo. O que foi que aconteceu neste dia?
̶ Eu e a minha família estávamos passando as férias em Maceió. A Adele, minha esposa, estava dentro do mar, no rasinho, com a nossa filha, Hermione, de três anos. Era um dia lindo e a praia estava cheia. Fui comprar milho em um quiosque perto da praia. Quando retornei, as duas não estavam mais lá. ̶ Ele baixou a cabeça e ficou em silêncio.
̶ Solano, Solano? O que aconteceu?
̶ No começo não me preocupei. As duas adoravam fazer um turismo por onde passavam. A primeira coisa que pensei é que estavam procurando conchinhas. A Hermione ficou fascinada pelas conchinhas e compramos um baldinho para ela guardá-las. Todavia, o tempo foi passando e nada delas voltarem.
̶ O que você fez?
̶ Falei com as pessoas em volta, com o salva-vidas e nada. Foi aí que tive a ideia de ligar no celular dela. Tempo perdido, pois ele estava na bolsa debaixo da cadeira. Uns quarenta minutos depois, vejo a Adele com um policial. Eu estava desesperado e fiquei ainda mais. Ela mal podia me encarar. Gaguejava tanto que eu não consegui entender o que ela falava. O policial me esclareceu o que havia acontecido. As duas resolveram andar pela praia e, um quilômetro e meio depois, foram surpreendidas por um arrastão. As pessoas ficaram desesperadas, muita correria e afobação e a Hermione desapareceu.
̶ Desapareceu?
̶ Sim. A Adele, assim que deu falta da Hermione, falou com o policial que logo tomou as providências para encontrá-la. Nós ficamos o dia inteiro na praia falando com as pessoas e ambulantes. A televisão, as rádios e as redes sociais foram mobilizadas. O caso chamou a atenção das autoridades e da população. Foi uma comoção muito grande. A delegada foi muito atenciosa e fez o que pôde para encontrá-la.
̶ E a sua mulher? Como ela reagiu?
̶ A Adele sempre se culpou, apesar de ter sido uma fatalidade. Deixamos tudo para trás e viemos morar em Maceió. O nosso único objetivo era ter a nossa filha de volta sã e salva. Um ano depois, vivendo praticamente vinte e quatro horas em função disso, ela faleceu devido a um câncer na garganta.
̶ Como ficou a sua vida depois de mais uma perda?
̶ Vazia, sem sentido. Não tinha mais forças e nem dinheiro para procurar a Hermione. Fui até a delegacia e pedi para a delegada encontrar a minha menina. Dei a ela o endereço e o contato do meu irmão. Admiti para ela que não tinha mais condições de prosseguir. Agradeci a ela pelo empenho e atenção que sempre teve comigo e com a minha esposa.
̶ Faz dois anos que vive assim?
̶ Não. Três anos para ser mais exato. Desde o dia dois de setembro de 2016, não sou nada mais do que um corpo que vaga de um canto para o outro. Contudo, sem dúvida, depois do falecimento da Adele, tudo ficou pior. Depois de ir à delegacia, peguei um ônibus e fui indo de cidade em cidade. Passava um tempo pelas ruas, bebendo, me drogando e mendigando. Hoje estou aqui, amanhã sabe se lá onde estarei.
̶ Posso lhe dar um conselho? Não na qualidade de médico, mas como pessoa que já sofreu muito na vida?
̶ Pode. Qual é?
̶ Acorda rapaz! Levanta e sacode a poeira! Procure o seu irmão. Peça ajuda a ele. Retome o caso da sua filha. Quem sabe ela não está com ele esperando pela sua volta? Não tenha medo da verdade. Mais cedo ou mais tarde ela irá aparecer. Independentemente do que o espera, acredito, de verdade, que nada pode ser pior do que o castigo que você está se impondo.
YOU ARE READING
Filhos da Rua
Short StoryLivro de contos tratando das experiências vividas por pessoas que escolheram a rua como sua morada. Cada um deles contará a vida de um personagem e os motivos que o levaram para a rua. A obra é formada por inúmeros contos que serão publicados uma...