A Cristal estava andando pela rua. Era uma noite fria de julho. O relógio da praça marcava quatro graus. Ela estava com frio e fome. A lixeira estava aberta e ela pegou um saco preto. Ficou admirada com o que viu: um bebê dormindo, vestido de amarelo, com touca, gorrinho e sapatinho. Correu o mais rápido que pôde e o entregou à Mona. Ela olhou bem para a amiga e disse:
̶ Por essa "surpresa" eu não esperava. Você sempre me surpreende com o que me traz... mas dessa vez... caprichou! E agora o que iremos fazer?
Eu, de pronto, respondi chorando. Um choro forte e insistente. Nem dei tempo da Mona pensar em se livrar de mim. Ela me deu a única coisa que tinha: chá de marmelo do cerrado. Colocou num copinho de plástico. Eu fiquei satisfeito e dormi. Isto é tudo que sei. Não tenho a menor ideia da minha origem. No dia 19 de julho de 2007 conheci a minha família: a Mona e a Cristal. Moramos debaixo de um pé de Marmelo do Cerrado. A Mona sabe utilizar-se da fruta como poucos. A base da nossa alimentação vem dela: xarope, licor, sucos, geleias e doces. A planta tem um aroma forte e o gosto lembra o da pêra.
A Mona, quando eu fiz seis anos, me deixou catar garrafas de vidro e potes pela rua. A Cristal estava bem velhinha, não corria mais. Os cílios e o pelo que eram pretos ficaram grisalhos. A vivacidade e agilidade dela foram substituídas pela sabedoria e quietude. Com ela aprendi a ser paciente e cuidadoso. Ela colocava um galho na boca antes de pegar qualquer coisa no lixo. Eu não entendia muito bem a razão. Quando levei um corte profundo na mão esquerda, percebi o quanto ela tinha a me ensinar.
Saíamos cedo, por volta das seis horas e voltávamos na hora do almoço. Trazíamos o carrinho de supermercado abarrotado. A Mona fazia a seleção, limpava as garrafas e os potes e nos servia o almoço. O cardápio dependia do que conseguíamos dos restos da feira. O dono do açougue nos dava as carnes que estavam próximas do vencimento. A comida era simples, mas nutritiva e feita com capricho. Depois do almoço, dormíamos na rede e a Cristal ao nosso lado. De tarde, preparávamos chá ou suco de marmelo e comíamos a geleia ou doce da fruta. Num dia bom, quando eu e a Mona conseguíamos vender algum produto no semáforo (geleia, doce, xarope e licor), tínhamos pão de sal e torradinhas para o lanche.
No final da tarde íamos num albergue para tomar banho, jantar e escovar os dentes. À noite eu gostava de observar o céu e as estrelas. O cenário era lindo. A Mona, antes de dormirmos, fazia uma oração e o balanço do dia. Ela chamava de a "hora do exame de consciência". Depois, ela se levantava, subia no galho mais baixo da árvore e pegava um dos muitos livros de histórias infantis. Eu achava genial a criatividade dela. A árvore, além de ser nossa fonte de alimentação, era moradia. Nos seus galhos tinham gaveteiros - caixas de papelão e de plástico -, que guardavam nossos objetos, roupas e utensílios domésticos.
Em uma dessas noites, não consegui controlar a minha curiosidade e, perguntei:
̶ Onde está a sua família? Por que você é tão sozinha?
̶ Léo, você sabe que não gosto de falar sobre o passado. A vida é feita no presente.
̶ Eu sei, eu sei. Você é tão esperta, educada. Sei que não nasceu na rua como eu.
̶ Verdade. Eu era considerada a "ovelha negra" da família. Sabe o que é isso?
̶ Não. Que nome engraçado. Ovelha não é um animal?
̶ Isso aí. É uma expressão popular que se refere a uma pessoa diferente das outras. Alguém que está fora dos padrões considerados normais. No meu caso, a minha família me considerava "pra frente", "desmiolada", "cabeça de vento". Eu não me encaixava no modelo de filha, irmã, neta, sobrinha, prima e sei lá mais o que esperado por todos.
̶ Eu não entendo. Para mim você é a pessoa mais legal que conheço. Só não lhe chamo de mãe... ̶ Ela me olhou aborrecida. ̶ Eu sei.... não repetirei esta palavra proibida.
̶ Saí de casa para nunca mais voltar. É tudo que você precisa saber.
̶ Fico feliz por você ter escolhido esta árvore e a Cristal como suas companheiras. Sem elas eu não estaria aqui. Este pedacinho de chão é um paraíso. Que história contará hoje?
O sol ainda não tinha aparecido. A Mona me acordou para irmos à igreja pegar as doações de inverno. A fila estava dando voltas. Pegamos a senha e sentamos na calçada. Às onze horas chegou a nossa vez. Ganhamos agasalhos, meias, luvas e cobertores. Na saída tinha um balcão cheio de livros usados. Eu peguei os que tinham a capa mais colorida e bonita. A Mona ficou um tempão escolhendo os dela. A Cristal estava cansada e fomos para casa.
Na volta pegamos mangas que estavam bem maduras. É incrível como a natureza é generosa. Nos arredores da nossa árvore existem outras que nos garantem frutas frescas o ano todo. Arrumamos as doações nos galhos mais altos para evitarmos furtos. Uma vez ou outra o nosso lar era invadido e os "gatunos" – como a Mona os chama – levavam de tudo. Lembro-me de um sábado que fomos ao parque e, quando chegamos em casa, ela ficou muito brava:
̶ Quem foram os gatunos que furtaram o meu estoque de geleias, doces e polpas de marmelo do cerrado? Era só o que me faltava... roubaram o isopor, as garrafas vazias e os potes.
̶ Acho que eles estão bem longe daqui, não é mesmo?
̶ Engraçadinho... Agora você terá que providenciar novas garrafas e potes.
̶ Sem problemas. Eu e a Cristal resolveremos o problema. Teremos um estoque grande de potes e garrafas.
̶ Da próxima vez estarei mais preparada. Mudarei o local dos objetos. Deixarei bem à vista as garrafas e potes sujos para não ficarem com as mãos abanando.
Estava orgulhoso de mim. Pela primeira vez consegui vender todos os produtos no semáforo. Entreguei o dinheiro para a Mona. Ela me deu um sorriso largo e falou:
̶ Léo... já conversamos sobre isso... sei que você não quer saber do assunto, mas é importante que aprenda a ler e a escrever.
̶ Tudo isso é uma perda de tempo. Eu sei me virar com os números. Não erro o troco. Não pretendo me mudar daqui. Nem fazer nada de diferente. Ler e escrever pra quê?
̶ Você não gosta de ouvir as histórias que eu lhe conto?
̶ Sim. Quando as ouço parece que estou viajando sem sair do lugar.
̶ O livro nos possibilita viver inúmeras vidas e histórias ao mesmo tempo. Ele é bem democrático. Acolhe todos, ou melhor, quase todos. O grupo dos que sabem ler. Eu estou ficando mais velha e daqui a pouco não poderei ler para você.
̶ Tá bom, tá bom. Chega de falar nisso. Dia sim, dia não essa mesma conversa. Mas tenho uma condição: nada de escola, professora, sala de aula. Aprenderei a ler, escrever e como mesmo que você fala? Esqueci... tem a ver com números e cálculos.
̶ Ah sim, são as noções básicas de matemática. Importantes para que você saiba lidar com as situações do dia a dia.
Não foi tão difícil como eu esperava. Aprendi a ler e a escrever com nove anos. Pena que não aprendi antes. A leitura era a minha maior fonte de conhecimento e de prazer. Encontrava livros de todos os gêneros jogados nas lixeiras. Selecionava os que me interessavam. Vários galhos da árvore viraram a minha biblioteca. Viajei pelo mundo com os livros de Geografia, História e os infantis. Comecei a ler tão bem que virei o contador de histórias da casa.
Aos onze anos comecei a escrever as minhas histórias voltadas para o gênero fantasia. Fiz umas economias, com o dinheiro arrecadado no semáforo, e comprei caderno, lápis, canetas e borracha. O meu primeiro livro, O outro lado do mundo, vendeu 121 cópias, todas escritas à mão. É um trabalho bem artesanal. Dedico boa parte do meu dia trabalhando nele.
Era uma tarde fria de domingo. A Cristal estava inquieta. Não desgrudava de mim nem por um segundo. Não queria comer e tampouco beber. Senti que ela estava nos deixando aos poucos. Deitei ao lado dela, abri o meu livro, e comecei a lê-lo. Ela foi ficando mais calma. Cheguei bem perto dela e falei:
̶ Você cumpriu a sua missão. Eu estou bem. Acabei de completar doze anos. Já estou crescidinho. Quando chegar a sua hora pode ir em paz.
Ela balançou o rabinho e deu seu último latido. Olhei no relógio da praça. Eram vinte horas e três minutos. Eu a enterrei no pé da árvore de Marmelo. Ela é o meu lar e sempre será. Sou feliz morando ao ar livre, em contato direto com a natureza, e olhando para o céu e as estrelas. Seguirei a vida escrevendo ao lado da Cristal e da Mona.
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Filhos da Rua
Short StoryLivro de contos tratando das experiências vividas por pessoas que escolheram a rua como sua morada. Cada um deles contará a vida de um personagem e os motivos que o levaram para a rua. A obra é formada por inúmeros contos que serão publicados uma...