Eram quatorze horas. Eu estava na rodoviária de Pacaraima, no estado de Roraima. Fazia uma semana que ela era minha nova morada. As pessoas, de uma forma geral, ficavam contrariadas com a minha presença. Peguei um papelão que achei no lixo e escrevi: meu nome é Mariam, tenho dois filhos que ficaram com os meus avós na Venezuela. Por favor, ajude-me da forma que quiser e se puder. A maioria não me via e, os poucos que se davam o trabalho de fazê-lo, me insultavam dizendo para eu voltar para casa junto com os demais. A fome me consumia e o cansaço também. Fazia dois dias que não tomava banho. O meu cheiro estava insuportável o que irritava ainda mais as pessoas.
Uma senhora sentou-se ao meu lado, com muita naturalidade, e me ofereceu uma marmita e um copo de suco. Pensei: "deve ser uma miragem. Será que a falta de comida e água estão me enlouquecendo?" Arrisquei e, quando peguei a embalagem e constatei que era real, o meu coração pulou. Agradeci e fiquei espantada por ela permanecer comigo e ficar me olhando sem dizer nada. Terminei de comer e ela abriu um livro e começou a lê-lo. Tirou uma barra de chocolate da bolsa, comeu uns quadradinhos e me deu duas fileiras, e continuou lendo. Eu não sabia como me portar, mas tinha certeza que não queria estragar aquele momento. Ela fechou o livro e me perguntou:
̶ Mariam, faz quanto tempo que você saiu do seu país?
̶ Uma semana.
̶ Deve estar sentindo muito falta dos seus filhos. Como está sendo para você ficar longe deles?
̶ Estou bem preocupada. Como escrevi no papelão os meus filhos ficaram com os meus avós. Eles estão bem velhinhos, doentes e perderam a casa deles. Estão morando em um prédio abandonado com risco de desabamento. Na verdade, muitos dos nossos vizinhos estão por lá. Todos são solidários e dividem o pouco que tem. A situação é precária, há muita violência por toda parte.
̶ Qual o nome dos seus filhos e quantos anos eles têm?
̶ Marcel e Dariana. Ele tem cinco e ela oito. Você quer ver uma foto deles?
̶ Quero. Que crianças mais fofas! É do aniversário dela?
̶ Sim. Na piscina da nossa casa. Foi em 2013 e ela estava fazendo dois anos. Época boa. O meu marido estava vivo e tínhamos uma vida estável e feliz. Ele era veterinário e amava o que fazia. Minha filha dizia, até bem pouco tempo, que queria ser veterinária e trabalhar com o pai cuidando dos bichinhos. Do dia para a noite, mais precisamente a partir de 2017, com a morte do meu marido – ele se suicidou por estar endividado, pela perda da casa e por não conseguir sustentar a família – nossa vida virou de cabeça para baixo. Fomos morar na casa dos meus avós e, um ano depois, eles perderam tudo que tinham e fomos para o prédio em ruínas.
̶ Pelo que entendi vocês foram despejados em 2018. Estamos em agosto de 2019. O cenário da Venezuela era desesperador e está ainda pior. Como você fez para garantir a sua sobrevivência e da sua família?
̶ Sabe o noticiário que você acompanha aqui no Brasil? Lá é dez vezes pior. Vi coisas que nunca imaginei presenciar. Pessoas brigando na rua, feito animais, por um pedaço de carne podre. Mulheres, aos socos e pontapés, lutando por um cliente em troca de uma ninharia. O ser humano faz qualquer coisa para sobreviver. Eu sou o maior exemplo disso: fiz coisas impublicáveis, a mais leve delas foi me prostituir, e faria novamente para garantir a sobrevivência dos meus filhos e avós.
̶ Como você teve forças para deixá-los e vir aqui para o Brasil?
̶ Meus avós imploraram para eu vir para cá. Falaram que era a única forma de termos uma vida melhor. A maioria dos nossos conhecidos vieram para o Brasil, outros optaram pelo Chile, Equador, Colômbia e Peru. Escolhi o Brasil por influência de uma amiga minha. Ela me disse que era um país aberto aos imigrantes. E o melhor: tolerante com as pessoas que fugiam dos seus países em virtude de situações de guerra e de pobreza extrema.
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Filhos da Rua
Short StoryLivro de contos tratando das experiências vividas por pessoas que escolheram a rua como sua morada. Cada um deles contará a vida de um personagem e os motivos que o levaram para a rua. A obra é formada por inúmeros contos que serão publicados uma...