Meus pais, Rafael e Mônica, casaram-se muito jovens. Eles tinham dezenove anos. Eu nasci seis meses depois, em janeiro de 1990. Minha mãe foi expulsa de casa pelo pai, minha avó já havia falecido. Ele morreu numa briga de bar, uns meses depois de rejeitar a minha mãe. Meu pai foi criado pelo irmão, Rômulo, vinte anos mais velho, desde o acidente de navio no qual morreram os meus avós. Quando eu nasci, meus pais estavam desamparados e foram ajudados pelo meu tio. Ele construiu uma casa, simples, mas confortável, nos fundos do terreno dele.
Meus avós paternos deixaram de herança uma loja de Antiguidades. Ela ficava no terreno ao lado de casa. Meu tio e meus pais trabalhavam nela. Ele era o gerente, meu pai o vendedor e minha mãe a caixa. A loja era a minha segunda casa. No escritório tinha uma caminha para eu descansar quando o sono chegava. Na copa minha mãe fazia o café da manhã, almoço e lanche da tarde. Íamos todos para casa somente depois de fecharmos a loja, às dezenove horas. Era o momento do dia que eu mais gostava: era a oportunidade que eu tinha de ficar a sós com os meus pais. A rotina somente se modificou quando comecei a frequentar a escola, a três quadras de casa, no período matutino.
Minha infância foi boa. Ia para a escola, almoçava, brincava no quintal, principalmente na casinha da árvore. Quando eu estava lá o tempo parecia parar. Brincava com as minhas bonecas, fazia comidinha para elas, trocava fraldas e dava banho. Depois que aprendi a ler, ganhei um pequeno quadro negro e alguns livros do meu tio. Minhas bonecas viraram além de filhas, alunas. Ficava a tarde toda brincando e fazendo as lições de casa. Minha mãe tinha que me chamar e insistir muito para eu ir para casa. Parece que estou a ouvindo falar:
̶ Nanda... Nandinha... já são 19 horas. Está escuro. Desça para tomar banho e jantar.
̶ Tô indo mãe... Estou terminando de ler o final do livro. Daqui a pouco tocará o sinal para a aula acabar.
̶ Fernanda! Não repetirei. O sinal já tocou há muito tempo. Já são quase 20 horas. O jantar está esfriando na mesa. – Quando a minha mãe me chamava de "Fernanda" era encrenca na certa. Eu sabia que não haveria uma segunda chance. Arrumava rapidamente os livros e me despedia das bonecas. Era a pior hora do dia. Eu queria morar na casinha e não sair de lá.
Sempre que me recordo da infância, pelo menos até os nove anos, meu coração se enche de alegria. Meus pais, com a ajuda do meu tio, fizeram uma festinha surpresa para mim. Chamaram os meus coleguinhas de escola, alguns vizinhos e os meus padrinhos. O tema da festa foi as "Meninas Super Poderosas", meu desenho favorito. Ele retrata a história de três meninas voadoras – Lindinha, Docinho e Florzinha – que protegem o mundo contra o mal. Minha mãe me deu a fantasia da Docinho, pediu para eu vesti-la, e me levou até o quintal. Chegando lá, todo o espaço estava decorado com as minhas personagens mais amadas. Minha professora e meus colegas estavam me esperando e, quando me viram, começaram a cantar os parabéns. Foi o melhor e o pior dia da minha vida.
Tudo estava perfeito, até eu me sujar de molho de cachorro quente. Fiquei em pânico, não queria manchar a fantasia da minha heroína preferida. Procurei a minha mãe para me socorrer, não a encontrei. Falei com o meu pai, mas para variar, ele delegou o problema para ela. Estava perdendo as esperanças de salvar a minha roupa, quando a vi entrando em casa. No mesmo instante, a minha madrinha me chamou para fazer pintura de rosto. Demorou um pouco, mas valeu a pena. Entrei em casa, procurei a minha mãe e não acreditei no que estava acontecendo. Meu tio estava no quarto junto com ela. Fiquei parada, coração saindo pela boca, e com falta de ar. Foi quando o meu tio me viu e disse:
̶ Nandinha... que cara é essa? Venha aqui para conversarmos. ̶ Minha mãe estava branca e se cobriu com o lençol. Ela tremia e não conseguia me olhar. Eu não sabia o que fazer. Ele insistiu e eu, não sei o por que, decidi obedecê-lo. Sentei longe dele, no pé da cama. Ele me puxou para perto e disse no meu ouvido: ̶ Docinho este será o nosso segredo. Você não pode contá-lo a ninguém, principalmente para o seu pai. Está tudo bem. Volte para a festa e divirta-se.
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Filhos da Rua
Short StoryLivro de contos tratando das experiências vividas por pessoas que escolheram a rua como sua morada. Cada um deles contará a vida de um personagem e os motivos que o levaram para a rua. A obra é formada por inúmeros contos que serão publicados uma...