A primeira vez que vi um palco foi aos três anos. Lá se vão quarenta e dois anos. Minha avó, Jussara, me segurava no colo, enquanto os meus pais tocavam e cantavam. Minha mãe, Malu, cantava e, o meu pai, Ciro, tocava guitarra. Eles tinham uma banda de rock chamada Pintores do Asfalto. O que eu mais gostava nas apresentações eram as roupas extravagantes e coloridas. Acompanhei os meus pais até os seis anos. Toda noite era de festa. Eu adorava aquela vida cigana, de cidade em cidade, cada dia em um lugar diferente.
Aos sete anos fui morar com a minha tia, Beatriz. Os meus pais ficaram viajando mundo afora. Sempre me mandavam postais, fotos, brinquedos e roupas dos lugares por onde passavam. Eu sofri muito com a ausência deles, sentia saudade dos shows e da vida agitada. Acredito que o mesmo aconteceu com a minha avó, pois ela faleceu em seguida. Nos primeiros anos eles me visitavam de seis em seis meses, mas com o passar do tempo os encontros foram ficando cada vez mais raros. Em contrapartida, a ausência física era substituída por presentes e mais presentes.
A última vez que vi os meus pais foi há muito tempo. Eu tinha recém completado dezoito anos. Eles me deram um carro e passaram a casa deles para o meu nome. Até os meus vinte e nove anos, depositavam uma quantia mensal polpuda em uma poupança. Não tenho notícias deles desde então. Acredito que tenham falecido. Não guardo mágoas. Eles eram felizes juntos e viajando pelo mundo. Ficaram comigo até quando puderam. Cuidaram de mim à distância. Ajudavam a minha tia financeiramente e nunca me faltou nada. Preocuparam-se com o meu futuro. Entretanto, senti e sinto falta do essencial: presença.
Estou falando neles por serem pessoas especiais para mim, apesar dos pesares. A ausência deles dói até hoje. Acho que não irei me curar dessa ferida. Não saber o real paradeiro dos meus pais também me incomoda. Minha tia sempre percebeu o meu sofrimento e fazia de tudo para amenizá-lo. Ela sabia que eu gostava de circo, teatro, dança e música. Todos os dias, depois da aula, ela se dividia e conciliava o trabalho com as minhas atividades culturais. Foi o que me salvou.
Fiz a faculdade de artes cênicas e, desde a adolescência, escrevo e atuo em peças teatrais infantis. O universo infanto-juvenil sempre foi o meu lugar. Foi numa das minhas peças que conheci o meu esposo, Marcelo. Ele estava acompanhando a sobrinha, que pediu para tirar uma foto com todo o elenco. Meses depois, estávamos casados. Minha tia, já idosa, foi morar conosco. Ela quem me ajudou a cuidar do meu filho Diego. A presença dela, uma vez mais, foi fundamental na minha vida. Graças à Beatriz pude usufruir da maternidade sem culpa. Consegui aliar o lado pessoal com o profissional de forma bem equilibrada e tranquila.
Nossa rotina era bem intensa. Eu trabalhava muito, fora e dentro de casa. Não quis misturar trabalho com vida pessoal. O Diego, desde que nasceu, ficou bem distante do teatro. Minha tia só o levava quando eu mudava a peça teatral, o que acontecida uma vez por ano. O Marcelo trabalhava em três hospitais diferentes como médico cirurgião. Apesar do horário apertado, tínhamos uma regra de ouro em casa: pelo menos uma refeição do dia em família. Essa tradição surgiu por causa do Diego:
̶ Não acho justo! Não mesmo!
̶ O que Guinho?
̶ Ficar dias sem ver o meu pai, sem falar com ele.Quero ter a atenção dele, nem que seja um pouquinho, diariamente.
̶ Entendo perfeitamente. Mas você sabe que os horários dele são corridos? E que muitas vezes ele é chamado às pressas?
̶ Sei sim, vó. ̶ Ele chamava a minha tia de vó. ̶ O dia tem vinte e quatro horas, né?
̶ Correto.
̶ Então ele pode tirar uma horinha e ainda ficar com vinte e três.
̶ Verdade (risos). Como você pensa em solucionar o problema Guinho?
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Filhos da Rua
Historia CortaLivro de contos tratando das experiências vividas por pessoas que escolheram a rua como sua morada. Cada um deles contará a vida de um personagem e os motivos que o levaram para a rua. A obra é formada por inúmeros contos que serão publicados uma...