Sonho com um palácio. Sei que é um sonho no segundo que abro os olhos e assisto o sol se deitar, preguiçoso, sobre o enorme terreno verdejante. Deve ser a manhã depois de uma noite chuvosa, porque a grama embaixo dos meus pés descalços tem aquele aspecto elástico e borrachudo típico de terra úmida. Uma manhã eterna, fruto de um passado imaginário, inexistente. Não há uma única nuvem no céu, mas a luz não está cegante, e o ar cheira puramente a natureza e orvalho, como se tivesse sido lavado a mão em água fria recentemente; como se os gentis dedos róseos da aurora tivessem tomado o cuidado de checar toda a atmosfera a procura de manchas e então, se livrado delas.
A última vez que ouvi um silêncio como esse, estava embaixo d'água. O mundo de fora — a existência fora do meu corpo — foi coberta por uma grossa camada de líquido, e tudo que resta dele é o que meus olhos podem assimilar. É por isso que sei que é um sonho. Porque estou sozinha. Sozinha daquele jeito que, se estivesse em meio a uma multidão, ainda estaria irrefutavelmente só.
Começo a andar em direção ao palácio. O tapete macio da grama afoga meus pés a cada passo, e assobio uma melodia qualquer enquanto caminho, embora não possa ouvi-la. O terreno é alguma espécie de gigantesca clareira, acho, porque o horizonte para todos os lados é apenas o céu e altos, espessos pinheiros. O topo deles balança de acordo com uma brisa que não sinto. O único balançar de minhas saias é de acordo com meu caminhar, e elas balançam e balançam, brancas contra o verde. Não são minhas saias, noto. Não estou nem usando um corsete. Estou vestida como alguma ninfa em uma pintura neoclássica.
Não me resta tempo para questionar minhas roupas. Me encontro de repente, em frente às portas douradas do palácio, que estão escancaradas e abandonadas. Não consigo ver ninguém por perto, nem ouvir alguma alma. Parece que todo o mundo foi expelido dessa clareira. Meus passos ecoam quando adentro o salão. O chão é de mármore creme e o teto alto decorado com um lustre de cristal. As paredes curvadas, da sala circular, são decoradas em prata e dourado, mas não mostram nenhum quadro. Parece um palácio recém construído, para o qual ninguém está se mudando. Um lugar feito por nada.
Paro no centro do cômodo e me viro de forma a encarar a paisagem além das portas. As paredes nuas e opulentas servem de moldura para todo o verde que se estende além de mim. Os pinheiros continuam dançando, protegendo esse canto do mundo. E a brisa que não sinto varre a floresta. E estou completamente sozinha.
E de repente, me acomete uma melancolia tão grande que acho que vou morrer bem naquele momento. Acho que vou explodir no meio daquele belo salão. Não sei de onde ela veio, mas se apossou de um ponto no meu peito como um parasita, e dali me grita uma dor suave que parece querer durar pra sempre. Me ajoelho no chão, e encaro o efeito da brisa. Vai parar logo, tenho certeza. A melancolia vai cessar. Assim como a brisa. As árvores continuam a dançar sua valsa hipnótica, me prendendo nesse canto do mundo e prendendo os outros no resto dele. Vai parar logo.
Talvez nem exista brisa. Talvez as árvores se mexam por vontade própria.
Lucas não está deitado ao meu lado.
Os lençóis estão frios. A manhã ainda está a caminho, e todo o quarto está pintado com um tom tranquilo de rico azul-prateado, como se estivéssemos dentro de um aquário. As sombras no teto se movimentam rapidamente, de acordo com a chuva, que ainda cai, constante e incansável. O barulho das gotas está claro, se esgueirando para dentro do quarto pela direita. Viro minha cabeça, para ver Lucas sentado a janela aberta, fumando um cigarro. Ele só fuma cigarros à noite.
— Oi— digo, a voz baixa e rouca — Não conseguiu dormir?
Existe algo sobre essa hora da noite que proíbe que as vozes humanas ultrapassem um certo volume. Que exige um respeito, uma reverência à magia da noite e requer que se viva quietamente, nunca tentando ultrapassar ou chamar mais atenção do que essa Senhora. Ele se vira de forma lenta para mim, como se hesitasse em afastar o olhar da janela.
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ÁGUA
FantasyAmbientado em um mundo atemporal, inspirado na virada do século 19 para o 20, Água conta a história de Eco, uma menina abastada de dezenove anos que sempre viveu uma vida trivial e tranquila. Enquanto passava uma temporada na casa de campo de seu am...