Sei quantos dias se passaram por causa do modo metódico e rotineiro com que viro a folha do calendário na cozinha. Não fosse por isso, o mundo não conheceria mais a noção de tempo; se esquecesse de virar uma página, ou virasse duas no mesmo dia, as cordas que amarram o sistema todo rasgariam com um estalo. Minha mãos, o papel áspero, sete horas no relógio.
Gosto de pensar assim. Meu costume de virar a página assim que chego na cozinha de manhã — mergulhando no calor denso e amanteigado que não se desprende de suas paredes — ele é que mantém a ordem do universo, e caso eu pare, o mundo mudará. Uma engrenagem fundamental em um relógio monumental e divino.
Imagino que eu esteja entretendo essas fantasias porque me sentei de pernas cruzadas em um caro tapete persa que pertenceu a minha mãe, encarando o enorme relógio de pêndulo com áureos detalhes que pertenceu a algum longínquo ancestral de Lucas. Mas a maior suspeita de catalisador cai sobre a chuva que não acaba, transformando as semanas em uma massa cinzenta e disforme, mutável e macia. E, presa nessa casa de campo de múltiplas salas, corredores ao ar livre que levam a outras alas e varandas escondidas por estantes, eu realmente me tornei algo com o poder de manipular uma força primordial como o tempo, ou a morte ou a realidade. O universo adotou novos rigorosos limites com prazer, e fez de mim divino colosso.
É claro que isso é tudo toleima de uma mente desocupada. As únicas pessoas aqui dentro são Lucas, eu, Tomás e Clara. Acho que Lucas está secretamente eufórico com a chuva que não acaba — talvez não secretamente. O silêncio massivo e a casa vazia, as horas que não parecem passar entregues a ele em uma bandeja de prata, para ler tantos livros incompreensíveis e escutar tantos vinis desconhecidos quanto quiser, tudo lhe parece uma benção, como se Júpiter tivesse lhe construído o paraíso como presente.
Dias atrás, em uma tarde um pouco mais branca do que cinza, a chuva afinou até quase desaparecer e eu lhe disse que talvez o chão secasse o suficiente para irmos visitar Flora, a velhinha que mora não muito longe de nossa casa e cozinha biscoitos divinos. Sua voz surgiu como um gelatinoso monstrengo debaixo d'uma montanha de cobertores: "ah, que bom".
Logo depois, a chuva se tornou tempestade, coroada com relâmpagos e adornada por trovões.
Parece-me que seu espírito se metamorfoseou em lacustre água. Absolutamente tranquilo. É sempre assim quando passamos temporadas no campo, é verdade, mas o efeito se expandiu com a presença da chuva. Está até mais magro e pálido, o que é impressionante, considerando a magreza e palidez que ele já ostentava inicialmente. Não acho que lhe caia mal, entretanto: junto com suas roupas cor de café e mogno, intensificam sua estética de intelectual obsessivo — as manchas de tinta nas bordas dos livros, os óculos sempre sujos, suas nervosas e delgadas mãos.
Outro dia encarei minha imagem em um espelho. Ouso chamar de O Assustador Encontro, letras maiúsculas. Permaneço rechonchuda como pêra madura, mas emagreci também, e minhas mechas assumiram uma cor ádvena contra minha pele desbotada: um incandescente, inumano vermelho. A palidez faz as sardas que me cobrem inteira parecerem mais escuras e nítidas, lembrando um punhado de terra molhado ou um acidental respingo de tinta. Não acho que me assemelhe a uma intelectual elegantemente obsessiva, e sim um excêntrico animal inserido em um ambiente que não lhe pertence; papagaio tropical em florestas temperadas. O que acontece de ser exatamente o que sou.
— Você não se sente mergulhada em alguma pomada curadora? — Lucas perguntou em um sussurro, um tom e cadência sobre suas palavras que exclusivo para quando diz algo que entra em um nível subjetivo ou espiritual. Era uma tarde como todas as outras, e estávamos deitados na sala ao lado da cozinha, de barriga para cima, nossas cabeças no mesmo nível, mas os pés apontados em direções opostas. Uma doce sinfonia antiga cobria o ar com mel.
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ÁGUA
FantasyAmbientado em um mundo atemporal, inspirado na virada do século 19 para o 20, Água conta a história de Eco, uma menina abastada de dezenove anos que sempre viveu uma vida trivial e tranquila. Enquanto passava uma temporada na casa de campo de seu am...