ÁGUA

sem remetente

Querida Vérid

Escrevo-lhe porque recentemente cheguei à conclusão de que estou para morrer em curto tempo. Acordei um dia, apenas para me assustar com como a casa estava vazia. Me deparei com os cômodos múltiplos quietos, sozinhos, legados ao desuso. Mas a casa está sempre vazia, os cômodos sempre esquecidos. E por causa do meu susto notei que estou para morrer.

Escrevo-lhe, e torço para que essas palavras lhe alcancem, porque tenho muito pelo que agradecer e acho, de certa forma, que minha morte acaba levando a você, acho que de certa forma ela é sua culpa. Não, culpa é uma péssima palavra. Seu mérito. É tudo seu mérito, não é? A mulher que me tornei. O mundo que o mundo se tornou. O mundo é todo seu.

Agora, suponho que devo esperar, com essa certeza pairando sobre mim, e continuarei vivendo do jeito que vivo desde que me mudei para cá, mas ainda assim de forma completamente diferente. Construi para mim um novo mundo com essa percepção, assim como você me presenteou um novo mundo, tanto tempo atrás. Me divertirei com essa certeza, acho. De repente a vida se tornou um grande jogo de adivinhação, e me sento diante de um colorido tabuleiro. Como? Quando? Onde?

Ontem fui até as montanhas. Acordei junto ao sol e só voltei quando ele já havia ido embora a muito. Queria ver aquela árvore que fica entre as duas rochas. Ela me lembra de mim mesma. Embaixo dela, encontrei um dente de leão, que trouxe comigo e deixo para você. Ele já irá ter morrido a muito quando eu morrer, mas suponho que isso não faça diferença para alguém como você. Por mais que tente, não consigo abandonar a noção do tempo como você me instruiu. Me sinto tola lhe deixando algo que vai morrer antes de chegar a você. Ainda assim, quero que saiba que lhe deixo o dente de leão. Não sei abandonar o tempo, mas sei apreciar um dente de leão.

Vi também um sapo por lá. Não consigo imaginar em qual lagoa ele vive. Mas lá estava ele, pequeno e verde. Achei que gostaria de saber que vi também um sapo. Gosto bastante deles, os anfíbios, embora sejamos um tanto diferentes. Eu, pessoalmente, nunca teria a habilidade de viver em dois mundos. Você bem sabe.

Eu espero que possamos nos ver de outra forma depois que tudo estiver acabado e eu for dormir... Faz tempo que cheguei à conclusão de que você há de ser um sonho. Não do jeito que as pessoas costumam aplicar a palavra sonho, mas... Bem, passo do pressuposto que me entendeu. Sempre vai entender.

Pensando em você, sempre

Dafne.