1. Festival do Céu

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    O Festival do Céu finalmente chegou, uma comemoração que ocorre uma vez ao ano, onde todo erisyano alegra-se para entregar aos Deuses as suas oferendas e fazer seus pedidos. É também a época do meu aniversário, o motivo da minha empolgação, pois cada ano que passa significa a aproximação da minha coroação.
    O gato de pelo negro faz questão de acordar-me bem cedo. Eu não o escolhi como meu familiar, pelo que soube, segundo os empregados, passou a morar conosco uma semana após meu nascimento. Por algum motivo, ele prefere minha companhia. O nomeei "Gatinho" visando o mínimo de apego possível. Animais costumam morrer cedo demais neste planeta.
    "Gatinho" pula na minha cama e deita-se bem na ponta para encarar-me com aqueles olhos estranhos de cores diferentes, como se estivesse esperando algo. Talvez um "Bom dia"?
    Esfrego meus olhos afim de melhorar a visão e noto que bem abaixo do gato há um pequeno pacote com um carta presa a uma fitinha vermelha. Estico-me em sua direção e puxo o que eu deduzo ser um presente de aniversário. Ajeito meu corpo de modo confortável e começo a desmanchar o laço repleta de curiosidade. Abro a carta e logo reconheço a bela caligrafia de minha mãe:
    "Parabéns, filha, finalmente o dia mais esperado chegou, o dia em que o bem mais importante da família Belshazar, o Espelho de Halah, passado de geração em geração será confiado a você para usá-lo com sabedoria e responsabilidade. Desejo que ao olhar fundo no espelho você possa me encontrar em si mesma. Sempre estarei contigo, não importa o ano, a vida ou o lugar.
    Com amor,
    Coriander."
    Um sorriso se abre em meu rosto, desembrulho o pacote e observo meu reflexo. Deslizo os dedos sobre os desenhos entalhados na superfície traseira da moldura e viro-a para admirar. Há uma pequena pedra amarela no centro envolvida por um mar de galhos que correm um sobre o outro infinitamente. O gato preto aproxima-se miando e deita-se em meu colo com seu ronronar.
    — É muito folgado, sabia disso? — digo levantando-me e recebo outro miado como resposta — Acho melhor você não ficar andando por aí hoje, vai ter muita gente pelos corredores e alguns podem não gostar de gatos — alerto enquanto arrumo meus cachos com os dedos e o gato mia mais uma vez.
    Por um minuto eu não sei se havia enlouquecido por achar normal conversar com um animal. Se fosse mais louça ainda, diria que o Gatinho havia tirado um dia para assustar-me, fingindo entender o que eu digo. Somos interrompidos pelas batidas na porta do quarto. Com minha permissão, minhas damas reais entram com um belo vestido vermelho e preto de tecido leve e com mangas longas, feitas de renda florida que eu teria que usar na primeira parte do festival, a comemoração do Deus Sol em seu ápice. Em uma hora eu estou pronta, enfeitada com joias douradas e bem maquiada.
    Guardo meu pequeno espelho no bolso da saia e eu estou prestes a sair quando Hyrom, meu irmão mais novo, surge na porta comendo uma maçã ainda vestindo suas roupas sujas de caça. O que diferencia nossa idade é apenas uns três anos e sua teimosia sempre que precisa usar um traje mais elegante e comportar-se como alguém da realeza.
    — Coriander irá mata-lo se o ver andando assim — digo indo em sua direção.
    — Irmãzinha, a aniversariante aqui é você, duvido que se importem comigo hoje — ele
    mastiga um pedaço da maçã — Apesar de ainda serem onze horas, já estou indo me fantasiar para o festival. Nos vemos ao meio dia na praça para o Tadsiwa — Hyrom puxa minha cabeça e dá um beijo em minha testa sujando-a propositalmente com baba.
    — Seu nojento! — exclamo limpando-me antes que ele atravesse o corredor e entre em seu quarto.
    Minhas três damas, Yalu, Tonah e Byena acompanham-me até o salão de festas onde os empregados esforçam-se para terminar à tempo a decoração. Encontro o Rei Sikar passeando em meio ao tumulto comendo uma sobremesa azul que certamente havia roubado da cozinha. Quando me vê, engole um pedaço grande e deixa o pratinho de lado numa mesa.
    — Não adianta disfarçar — solto um sorriso e abraço-o — Como vão as coisas, papai?
    — Lentas demais, minha luz. Esse calor também não está ajudando em nada. Que o Sol perdoe-me, mas não vejo a hora da festa lunar começar para o ar gelado correr pela cidade — diz Sikar — Você viu sua mãe?
    — Ainda não. Estou indo procurar por ela agora mesmo, preciso agradecer pelo presente que recebi.
    Dou um beijo no rosto de Sikar que fica corado e continuo, com a ajuda de minhas damas, a procurar Coriander. Levo um tempo para encontra-la no palácio e permanecemos juntas esperando o soar dos sinos marcando a chamada para a hora sagrada.
    O povo todo reuniu-se no centro da cidade, uma praça onde há uma grande árvore decorada com laços coloridos e pequenos objetos dourados, como: casas, espadas, símbolos antigos, estrelas e animais. A família Belshazar, mais conhecida como A Casa Vermelha, por morarmos em um palácio de tijolos vermelhos vibrantes, senta-se abaixo de uma tenda para proteger-se dos raios solares que escapam entre as árvores altas rodeando e praticamente cobrindo o céu da praça.
    Lá encontro meus primos e tias, as duas irmãs de meu pai que eu via poucas vezes na semana, pois moram em um pequeno castelo afastado da cidade de Fluorana. Eu tinha de admitir que eram pessoas estranhas. Por mais que tivéssemos parentesco, nunca compreendi essa parte da família que adorava ficar longe da sociedade e manter mais contato com a natureza do que com o resto do povo — não que eu não gostasse da floresta, ela retira meu estresse instantâneamente durante minhas caminhadas com Hyrom. Eles são piores que meu irmão, que ainda morava conosco apenas para não perder a chance de tornar-se o líder do exercito real, seu sonho.
    O festival é dividido em duas partes: um ritual de devoção ao Sol e outro para a Lua, ambos feitos ao meio-dia e à meia-noite. Nestes rituais os fluoraneos enchem suas cestas com frutas, ervas e objetos para agradar aos Deuses, e tudo isso é banhado com o sangue de um animal recém sacrificado — ato que chamamos de Tadsiwa. Na manhã, um boi é morto, representando a masculinidade do Deus; Na noite, uma vaca para feminilidade da Deusa. Todos ali presentes são obrigados a assistir, caso contrário, é dito que trará azar para toda a vida.
    Hyrom finalmente aparece vestido com seu traje cor de vinho enfeitado com detalhes dourados. Seu cabelo escuro e liso continua a mesma bagunça de sempre sobre a testa, embora tivesse mais elegância que o normal e a aparência de um verdadeiro príncipe. Carrega no cinto uma espada de ouro puro assim como a de Sikar. Meus três primos, que são apenas garotinhos, insistem em perturbar meu irmão para que eles empunhasse a espada dourada um pouquinho, no entanto Hyrom segue negando irritado. Aproxima-se de mim na tentativa de fugir dos garotos.
    — Eu os odeio — rosna entre os dentes — São crianças insuportáveis.
    — É apenas por um dia, não faça tempestade num copo d'água — cochicho mantendo minha postura e sorriso para o povo que acena. Dou uma breve olhada em seu traje — Você está bonito.
    — Estou derretendo neste calor e estas roupas são uma piada.
    — Concordo com a parte do calor, mas agora fique quieto, o Rei está vindo — aviso e automaticamente Hyrom melhora sua expressão facial, mostrando uma imensa felicidade de estar alí para cultuar os Deuses.
    A cara dele está incrivelmente sarcástica.
    O ritual segue de acordo com as regras. O sangue é respingado nas oferendas, a canção dos céus é cantada como em todos os anos e os cestos são carregados até a árvore no meio da praça e arrumados em volta de sua raiz. Os privilegiados são convidados a festejar no Palácio e o povo contina sua festa na praça com danças divertidas. No salão do Palácio, Hyrom aproveitao tumulto para contar-me algo.
    — Você lembra de Zannyr? O viajante que eu comentei, o qual consegue andar entre Sodalita e Fluorana sem causar confusões? — pergunta ele e eu respondo que sim com a cabeça — Ele logo, logo trará aquela encomenda que você tanto deseja. Pele de lobo, estou certo?
    — Certíssimo! — fico empolgada e o abraço — Agradeço — pego duas taças de vinho para nós na bandeja que o empregado atrás de Hyrom equilibra na mão.
    Sikar chama a atenção de todos ao tocar uma taça com um talher. Ele levanta-se de sua cadeira, e de longe me olha sorrindo enquanto diz:
    — Meus caros amigos, hoje é um dia especial para Fluorana. Os Deuses dançam junto ao povo, riem e bebem conosco. Hoje é o dia do nascimento de Erisyr, a nossa terra, a nossa casa. Devemos agradecer aos Deuses por tudo o que fizeram por nós em nossas vidas e agradecer pelo que ainda farão. E eu, particularmente, agradeço aos céus por terem me concebido minha primogênita e herdeira do meu trono, a princesa Astarte da Casa Belshazar. Que futuramente seu reinado seja próspero e justo. Feliz aniversário, minha querida filha!
    — Um brinde à princesa Astarte! — exclama minha mãe ao lado de meu pai e todos no salão levantam suas taças em minha direção desejando os parabéns.
    Disfarço minha vergonha olhando para o lado, porém toda minha felicidade se esvaiu ao ver alguém que eu não deveria.

Astarte e o Cristal da Criação | fanfic loki (PAUSADA) #RaposaDeOuroOnde histórias criam vida. Descubra agora