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Sexta-feira,

O esmalte vermelho em minhas unhas curtas está descascando, o fato de ter pintado a muito tempo também não ajuda.
Eu deveria ter escolhido um apartamento perto do hospital, assim não teria que acordar tão cedo e pegar tanto trânsito.
Se ontem, a noite não tivesse sido tão barulhenta, com aquela manifestação idiota e o confronto com os policiais, eu teria dormido bem melhor.
Uma buzina estridente me tira desses pensamentos e eu percebo que o sinal abriu.

O hospital - como eu imaginava-  está superlotado pelas pessoa que se machucaram ontem. É uma perda enorme de tempo, eu nem preciso saber o porquê daquilo tudo para deduzir que não ganharão nada com isso. Apenas as sequelas, é claro, que por sinal estão horríveis.
Interrompo esse pensamento quando percebo alguém se aproximando na minha direção.
-Você já viu o quadro hoje, está lotado! -diz Regina minha colega de  profissão. Regina e eu trabalhamos no  mesmo hospital há mais de cinco anos e mesmo assim, não me lembro de nenhuma conversa nossa que não tenha começado dessa forma.
-Realmente, não temos tempo a perder.-Ou que não tenha terminado assim.

Talvez eu devesse tentar me apropriar de um comportamento mais liberal. Como terapeuta eu sei que me faria bem.
Regina se afasta quando percebe que eu não direi mais nada.
Olho novamente o quadro em minha frente e procuro pelo meu nome.

Logo o acho, ele preenche esse quadro como nunca antes.
Muita gente hoje em dia fica com sequelas emocionais que ultrapassam as físicas quando se trata de ferimentos, porque eles são feitos de maneiras bem traumatizantes.

Com muitos pacientes precisando de mim, eu sei que não vou ter tempo para mais nada, mas isso é meio irrelevante, então, passo as mãos pelos meus cabelos perfeitamente pressos em um coque e pelo meu jaleco impecávelmente branco e estou pronta para o plantão.

                               ***

  Uma hora de plantão: nada que eu já não tenha visto pelos corredores desse hospital, o sol já nasceu e eu continuo impecável.

Duas horas de plantão: acalmei os pacientes e seus muitos familiares, disse que as chances são muito boas. Tomei minha primeira xícara de café.

Quatro horas de plantão: consultar, consultar, consultar. Medicar, medicar, medicar. Repetir maquinalmente os processos que aprendi na faculdade, retoquei a leve maquiagem e prendi o cabelo novamente.

Oito horas de plantão: errei o nome do paciente e a mulher dele quase me corrigiu mas logo lhe silenciei
com o olhar. Eu já tinha tomado mais de três xícaras de café e queria fazer uma refeição decente. Acho que já não estava tão impecável, mas como não puxei conversa com ninguém e tentei me afastar de quem o fizesse ninguém me disse o contrário.

Dezesseis horas de plantão: eu sei que já deveria ter parado mas o dia foi bem produtivo, além do mais, só falta mais um, mais um paciente e eu vou embora.
Quando escuto:

-  Kudrow! Kudrow eu sei que é você, não fuja de mim! - escuto pela milésima vez nesses cinco anos, Steve, meu concorrente, me chamar pelo sobrenome. Tento fingir que não é comigo, mas ele é um ser humano bem tapado e não percebe o meu desinteresse.

- Sim, Steve?
Respondo, rezando pra ele perceber em meu tom de voz que não quero ter essa conversa.

- Você por acaso está fazendo hora extra?- ele ignorou completamente o meu tom de voz.

- Eu sempre faço hora extra, mas acho que isso é irrelevante para a sua vida profissional, se me der licença...
-Eu tento sair mas ele me segura pelo braço.

- Olha Kudrow, isso não vai adiantar de nada, a vaga já é minha, ela tá no papo, e quando eu conseguir... Aí eu vou mandar em você, e aí você vai realmente precisar fazer hora extra.- Ele diz, olhado em meus olhos com o corpo muito próximo do meu. Eu não gosto do contado físico, então logo o desfaço e meu afasto dele para recuperar o meu auto controle e não agredi-lo. Para terminar o meu plantão, olho pela última vez esse quadro hoje e leio:

  "Dr. Eva Kudrow, quarto 56."

O RapazOnde histórias criam vida. Descubra agora