A sirene tocava alto, mas não tanto quanto as explosões no Giro. 3.
Diversos panoramas catastróficos haviam sido passados, estudados e introjetados em seu treinamento. Esta era a maravilha da Realidade Virtual Acelerada.
Vinte e três anos de idade e o Capitão Barbosa já contava com mais de um século e meio de experiência adquirida e testada... Mas nunca em campo.
Os cadetes não faziam ideia do quanto isso os tornaria distantes e apáticos em relação a todo o resto da sociedade, mas era um preço a pagar.
Navegadores de dois milênios atrás sofriam por não viver, por estarem distantes de tudo e de todos, exceto quando atracados.
Barbosa ficara viúvo sete vezes, vira seus filhos e netos morrerem e suas casas virarem escombros. Se apaixonara, traíra seus companheiros, havia participado de complôs e sabotagens, descobrindo seus limites éticos.
Pelo relatório que lhe haviam entregue, a sua probabilidade de rebeldia era de uma para duzentos e setenta milhões, o que era um padrão aceitável para capitães civis.
O SRVA só não ensinava uma coisa... ele possuía um ponto cego apenas.
Era capaz de ensinar a agir e reagir, descobrindo os desdobramentos de suas ações e mesmo as suas deficiências e potencialidades. Ele permitia, por exemplo, que uma jovem de vinte anos tivesse em seu Curriculum sete graduações, especialidades e horas de cirurgia para atuar como neurocirurgiã.
Seu ponto cego, era ele mesmo.
O sistema não previa as implicações do próprio SRVA nas decisões de seus alunos e isto fazia a maioria desenvolver vícios.
Viciados em realidade. Glutões, beberrões e afins, formando um padrão.
O sistema realizava simulações de rotina: combates, salvamento, estratégias e desastres e depois, rodava no automático, entre cinco e oito "vidas", com o aluno realizando suas funções nas mais diversas configurações políticas e sociais, além de simular outras ocupações.
Somente aqueles que realmente "amassem" a navegação, que tivessem permanecido mesmo nas condições mais adversas e não tivessem sucumbido às crises e revoltas eram diplomados. E por amarem tanto a navegação, eles seguravam as pontas e mantinham o vício sob controle.
Até o colapso. Hoje era ele quem colapsava. Já não dormia há mais de quatorze dias, não comia nem bebia nada a quarenta e oito horas e seus braços e pernas, por baixo do uniforme, estavam completamente marcados por queimaduras e ferimentos auto infligidos.
Ele não suportaria mais nenhuma simulação, mais nem um minuto daquilo. Era torturante ter a certeza de que estava apenas sonhando. Era hora de acordar e ele faria isto de forma contundente.
Nas últimas semanas, havia dado informações erradas e ordens conflitantes à sua tripulação, sabendo quais erros seriam analisados e quais não pelos sistemas da nave. Ao fim de poucos dias, bastou abrir a válvula errada, despressurizar o depósito de gelo... e comprometer irreversivelmente o sistema de centrifugação da Estação. Nenhum dos moradores seria capaz de reverter aquilo, nem ele mesmo.
E assim, poria fim àquela tortura que eram as simulações. Estava exausto de sentir saudades de pessoas e lugares que sequer existiam. Estava cansado de confundir vivências, de chorar os "Se"s que não vivera, os caminhos que não tomara, as possibilidades de ser e de fazer felizes pessoas ao seu redor que o veriam como algo mais que um CAPITÃO de cruzador hiperespacial de primeira categoria.
Queria ser amado, não temido.
Queria existir além das possibilidades.
Barbosa sentia a vibração sob seu corpo... era o sinal de que o último giro estava se rompendo, conforme ele previra.
No Giro Três, o último Censo havia registrado doze milhões de pessoas.
Era o maior dos oito giros e dispunha de sistemas independentes de manutenção da vida e desacoplamento. Mais seguro que ele, apenas os cofres genéticos, com os bancos de sementes e embriões. Mas eles estavam no Giro Oito. O mais distante de toda a maquinaria atômica. Setenta quilômetros de distância.
Seu sistema de sabotagem, contudo, era suficientemente elaborado para comprometer todos os giros ao mesmo tempo:
Ordenou substituírem os filtros de ozônio, ao mesmo tempo que realizava o treinamento de evacuação, desligando os sistemas de acionamento. Este procedimento impedia a central da nave de acatar os comandos de perigo e ligar os sistemas de emergência.
Também mandou aumentar a pressão dos supercondutores, pois passariam próximos a um Quasar.
O golpe final havia sido ejetar todo o gelo... depois de ter trocado os códigos dos pressurizadores de câmaras, o que fez com que a nave perdesse ar demais, massa em setores não homogêneos e rompesse as linhas de supercondutores. O hidrogênio havia tomado de imediato a maioria dos corredores, onde qualquer curto circuito o fazia explodir de imediato, graças à alta concentração de oxigênio.
A nave ignorou os incêndios, travou os escudos e os botes... e explodia agora, todos os giros ao mesmo tempo. Ele sentia a eletricidade e o calor percorrerem seu corpo após o primeiro impacto de explosão.
Como estava na ponte, seria o último a queimar, ou congelar, se o casco se rompesse antes de as chamas o alcançarem.
Morreria em paz, morreria sentindo.
Estava vivo, afinal. A dor que sentia em seu braço quebrado, no tórax perfurado, o gosto de sangue na boca e a dor nos pulmões a cada respiração eram a prova definitiva.
Começou a chorar. Aquela certeza infantil de que tudo estava bem, de que tudo acabaria bem era uma ótima "última impressão".
No fim, morreu para o gelo do espaço.Este é o relatório de bordo para falhas críticas da Nave Colonizadora 19 B2, teste 12 ZE.
Tempo de falha: 14 dias.
Sistemas comprometidos: falha catastrófica.
Pessoal envolvido: 1, padrão de acesso: total.
Recomendações: automatizar concentração de oxigênio, impedir alterações na pressão de supercondutores exigir verificações de segundo e terceiro operador para quaisquer alterações de agendamentos.
Status do simulador:
Falhando catastroficamente em d+8000 dias, por irrealismo implantado.
Todos os sistemas cibernéticos e orgânicos 20/20.
Recomendamos permanência do sujeito por mais 987000 simulações antes de seu descarte e substituição.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Curtas, Contos E Pontos
General FictionHistórias escritas para concorrer "aqui e ali", mas que não passaram no meu filtro, no dos meus leitores beta S2, ou ainda, nos concursos já finalizados Eu os trouxe aqui para uma apreciação de estilos. Leiam, comentem... critiquem. Eu PRECISO de...