Hora do Angelus

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— Pra quem você tanto reza, doutora?

— Como assim?

— Estamos em uma nave a caminho de Saturno, a milhares de quilômetros por hora, cercados de tecnologias, dentre as quais dezenas que você ajudou a desenvolver. E todos os dias, nesta hora, você para todas as suas rotinas.

— É mesmo?

— Ah, vai desconversar agora? Estamos há meses nesta lata de sardinha, Helena!

— Não estou desconversando. Estou curiosa. Como assim, eu paro tudo?

— Na maioria das vezes, você é bem discreta. Mas desde que saímos da órbita da Terra, você tem este ritual. É curioso, porque você não demonstra nenhuma religiosidade, sequer aquelas residuais, como expressões de "oh, meu Deus!" ou coisa do tipo.

— Tá... Volta um pouquinho. Você está dizendo que me viu parar nossas rotinas e realizar um ritual, todos os dias?

— Demorei algumas semanas para me tocar. Até um dia que eu estava na cabine e você no depósito, chamei pelo rádio e você não respondeu. Chamei mais duas vezes e como estava preocupado, liguei as câmeras. Você estava parada, com uma das gavetas do estoque aberta e os lábios mexendo.

— Eu devia estar com baixa oxigenação. O depósito é frio e pouco ventilado.

— Pensei nisso. Você estava sem o oxigênio acessório. Então eu abri o áudio de lá e tentei te ouvir, ver se estava pedindo ajuda.

— E?

— E nada. Você não estava falando nada e não me respondeu. Entendi que aquele devia ser um momento íntimo depois que você voltou do pequeno transe e ligou o comunicador. Achei que reclamaria da falta de privacidade, mas o que fez foi perguntar o que eu queria de janta. Fingi que nada tinha acontecido e só lembrei disso dias depois, quando a cena se repetiu, na sala de exercício.

— Lá o oxigênio não é reduzido. O que houve?

— Seus dados de biometria estavam todos no monitor, já que estava na esteira.

— Algo perigoso?

— Não! Pelo contrário! Pulso baixo, pressão adequada, glicose normal e oxigenação perfeita. Nunca vi dados tão perfeitos! Seu encefalograma também mostrava baixo nível de stress.

— Quantas vezes você viu? Em alguma eu te coloquei em perigo? Que horror! Será que estou enfrentando um surto psicótico, Giovani?

— Não, Helena. Calma! É o contrário. Você fica BEM! Você melhora depois desses eventos e mesmo quando para em meio a rotinas, suas respostas melhoram e não, nunca me colocou em perigo. Suas intuições melhoraram também. Seus resultados nos jogos de monitoramento, sua condição física... É como se você estivesse ainda na Terra. Parece que melhora a cada dia, enquanto meus dados são compatíveis com nossa jornada neste mar de escuridão e radiações cósmicas.

— Quero ver as câmeras.

— Vamos lá.

*

A cosmonauta flutuava pelo corredor, com um tablet na mão e um saco de lixo na outra. Eles precisaram trocar um painel na cabine e tiraram alguns cabos deteriorados. A nave, com seus mais de cinco anos de viagens, aguentava bem, mas tinha seus ocasionais problemas. Esta era a viagem final. Iriam para Saturno, ambos levando a carga mais preciosa que a nova colônia poderia esperar. De lá a nave talvez voltasse no piloto automático, trazendo os materiais negociados entre Terra e Colônia.

Chegando ao meio do corredor, ela parou e desligou a tela do tablet, colocando-o no bolso do macacão. Pegou um dos clipes magnéticos e fixou o saquinho com os restos de fios na parte metálica da estrutura do corredor e grudou o velcro do joelho à parte correspondente na passagem.

Curtas, Contos E PontosOnde histórias criam vida. Descubra agora