“Ele vinha andando pela rua meio apressado, ele sabia que estava sendo vigiado”...
Começou no karaokê, depois de seu décimo drink naquela noite agitada que era a despedida de solteiro de mais um amigo. Ele sabia cantar Raul, como qualquer um de sua idade... crescera com seu pai ouvindo no rádio do carro, nas idas para Atibaia, visitando sua avó. A luz no palco não era tão forte que ele não pudesse ver seus amigos na mesa, no alto do mezanino.
Aquilo doía um tanto... saber que era o último solteiro de sua turma, que havia perdido tantos anos naquelas idas e vindas, tentando achar seu caminho, tentando viver sua vida, e só agora perceber que toda sua luta acabou fazendo com que vivesse como seu pai:
Havia afastado todos ao seu redor e magoado todos que o amavam. Era um peso que carregaria, como seu pai havia carregado por anos, nas visitas quinzenais, nas férias e nas pescarias. Ele ouvia sua avó e suas tias falando dele e de como ele fazia tudo ao seu redor ruir por causa do vício... Mas no domingo à noite, quando tinha que dizer tchau, nenhuma delas via seus olhos vermelhos, molhados.
“É só dos olhos pra fora! Todo mundo sabe que homem não chora”. Foi o que disse sua tia, quando ele perguntou. “Seu pai é um viciado e sempre será. Ele não te deu nada de beber, não é?”
É claro que não. Seu velho estava sóbrio e lutando... Lutando como um Krathos, enfrentando deuses muito maiores que ele, mais caprichosos e maus.
Acabou Metrô linha 743, ele voltou para a mesa, sob os aplausos dos amigos: 958 pontos! Sua mesa estava à frente por mais de 200 pontos! Recomeçaram os jogos de bar. Aquele não era seu forte. Acabava perdendo todos, tinha que beber mais uma dose.
__Qual é, Betão? Você não tem fundo?
__Você quer é virar às custas da mesa!
Gargalhadas, mais duas rodadas.
__Garçom, uma cerveja!
__Só tem chopp.
__Desce dois. Disse ele.
__Desce mais! Falou o noivo.
Um cutucão no braço, outro rapaz aponta para o telão: era ele de novo.
Desce a escadaria sem problemas. Seu metabolismo é rápido, ele pode se esticar um pouco mais. Pede um minuto, vira à direita e entra no corredor dos banheiros. Tem duas moças saindo do banheiro feminino e ele não vai esperar o masculino esvaziar. Quarenta segundos de reflexão, lembrando de seu velho ao olhar no espelho. Ele morrera sóbrio. Acidente de trabalho, quando um depósito explodira. Seis mortos, três viúvas, dez órfãos. E ele. Órfão três vezes. Sua mãe quando ele tinha quatro anos, seu pai alegre, no mesmo dia. Aquilo que ele enterrou depois do acidente, foi apenas uma carcaça. Um Goul, um Zumbi... os restos mortais ambulantes de quem viveu, mas não vivia mais. A morte se recusou a leva-lo, atrasou sua ida para fazê-lo sofrer por anos. Hoje ele sabia a força que o velho fazia.
Sai do banheiro, a moça à porta fala alguma coisa, ele balbucia um pedido de desculpas e segue para o palco. Olha para a música que havia escolhido... outra fácil para a sua idade. Tardes de Domingo, Programa do Gugu, suas tias reclamando da indecência da TV, mas ninguém desligava aquele lixo e ia ler um livro, ou jogar alguma coisa, apesar das dezenas de caixas de jogos de tabuleiro no guarda-roupas. Ele gostava da Turma de Guarulhos, os Mamonas.
Escolher a música mais complicada era sempre uma saída para manter a pontuação alta. Você só tinha que manter os altos e baixos, não acertar a letra.
Realmente, era mais fácil ser medíocre no que todos eram patéticos. E este sempre foi o seu caminho. Suas tias não lhe enchiam a paciência se ele tirasse notas baixas em história, ou português, mas comemoravam seus “dez” em matemática e química. Não reclamavam das brigas na escola, se ele conseguisse uma medalha no xadrez. “Puxou a mãe! Ela também era inteligente!” E se as notas não eram aquilo, se ele aprontava, se não atingisse a cota... “Desse jeito, vai acabar como seu pai, fazendo todo mundo sofrer por causa da sua burrice”. Aquilo magoava. Para elas, a sexta-feira que o Lopes vinha pegar o garoto era sempre a mesma novela ruim:
“Não bebe do copo dele! Se ele te levar pro bar, liga pra gente!”
E o que o velho fazia? Perguntava da escola, conversava sobre a vida, pegava a Dom Pedro e dirigia até Atibaia, ouvindo tudo que os anos 70, 80 e 90 tinham de melhor. Cada quinzena era uma fita diferente, algumas vezes, gravadas do rádio e ele sempre chegava em casa com uma música nova na cabeça. Raras vezes ficavam no seu kitinete. Na maioria, iam pescar, ou passavam na casa de amigos ou parentes. Ali ele era o Chicão! Sim, com o ponto de exclamação. Sempre um serviço a ser feito, sempre uma emergência para cuidar ele acabou conhecendo Atibaia de ponta a ponta, viajou com seu pai desde Campinas, São Paulo capital e até mesmo esticaram um dia até Pouso Alegre, no Sul de Minas. Nos dez anos que viveu assim, nenhum bar, nenhuma cerveja nos almoços, churrascos ou festas.
Acabou sua música, sua mesa estava desfalcada em mais dois integrantes. Olhou o relógio, quinze para as três.
__Os casados foram embora! Mas nós vamos fechar o lugar, né? Falou o noivo, já sem condições de achar seu rosto no espelho, que dirá lembrar a senha do cartão.
Chamou o garçom, pediu a conta e um refrigerante. Conversou com os rapazes que ficaram, disse que levava o noivo e que eles fossem embora também.
Seu peito doía. Ele poderia estar casado, poderia ter filhos, ou ao menos, um filho... Ele apostava que se tivesse acertado no passado, se tivesse feito as escolhas mais acertadas, poderia ter tido uma menina, a quem ensinaria a não ser tão cretina quanto suas tias, e em quem ele poderia, um dia, ver o reflexo de sua mãe. Era esta a ideia de continuidade, não era?
Quando a conta chegou, eles falavam da vida de cada um. Três anos de namoro de um lado, seis do outro... o noivo, fez o pedido no aniversário de vinte e oito anos dela, mas já tinham sete anos de namoro. Amigos de faculdade.
Ele teve amigas na faculdade. Teve namoradas, amores verdadeiros...mas nunca foram a sua prioridade. Ele gostava de culpar suas tias, da imagem que elas incutiram nele de mulheres mesquinhas e rancorosas, roubando dele o único pai que ele poderia ter tido. É claro que os anos (e a terapia) haviam posto um ponto nisso e ele havia entendido que tinha priorizado as coisas erradas na vida.
Chega a conta e para a sua sorte, os rapazes haviam trazido dinheiro vivo. No karaokê alguém cantava Evidências. O coro toma todo o bar no refrão. Era a terceira vez na noite.
Negar as aparências... Ele havia se fechado. Ele havia passado os principais anos de sua vida dedicado ao vício e provavelmente agora já era tarde. Não via como fazer aquele dragão dormir de novo e ele caminhava na mesma prancha que seu pai.
O Garçom traz as comandas. Abraços, beijos de despedida, de jovens bêbados fazendo drama em comparar aquela farra com um velório...
Faltava pouco para as quatro quando saíram do karaokê, graças aos trôpegos jovens.
Do lado de fora, conversam sobre a vida, sobre o fim de semana e como passariam o domingo. Cinema com a noiva de um lado, churrasco e futebol do outro. Ele passaria ocupado. Trabalhava até as duas da manhã hoje, aproveitaria para dormir um pouco e ia curtir o domingo do seu jeito...
__Oh, saudade! Fala o primeiro.
__Cara, eu era viciado!
Todos riem, menos ele. Aquela palavra tinha uma carga, um peso, que só ele sabia. Havia custado muito em sua vida, mas ninguém se importava. Viciado... O vício agora era parte de um Glamour, de uma moda... era até uma medida de sucesso.
Cada um pediu um carro pelo celular, cada um para sua casa. O seu demorou mais e o motorista não gostou do estado dos dois, conferindo antes que a corrida era paga pelo cartão de crédito. Ele foi atrás com o noivo, deixou-o na casa de seus pais, que ele conhecia há muitos anos. Eram colegas de escola, cresceram juntos.
O pai do noivo agradeceu, deu “uma grana pro táxi”, sorriu e entrou, apoiando o rapaz.
Voltou ao carro e disse pra cortar caminho, se desse. Meia hora até em casa, dormir um pouco, tomar um banho e ir pro trabalho. Sem problemas. Já havia enfrentado condições piores. Quando estava na faculdade, virar duas noites direto era comum. A maioria delas, era realmente fazendo trabalhos e pesquisas... e nas outras, todo mundo precisa relaxar. Dizia para si mesmo.
Olhou de novo o relógio no meio do caminho: 5:40. Chegaria muito tarde? Será que não dava mesmo tempo? Queria ter saído do bar às duas, três no máximo, mas olha o desastre! Os outros o haviam segurado, sob a acusação de ser o mais velho da turma e ainda não ter “amarrado o burro”... podia virar se quisesse e era o que eles pretendiam. Encostou no banco e se assustou quando motorista chamou. Saiu, agradeceu e
“Se for só um pouco, ainda dá tempo” pensou sozinho. “Amanhã é sábado, eu entro meio dia.”
Subiu as escadas e olhou no relógio: 6:30. Ainda dava tempo. Eram só alguns minutos e deitaria. Ele não tinha bebido tanto e nem tinha dirigido! Merecia um descanso, afinal era só um pouco. Olhou na TV desligada e viu o reflexo de seu velho. Magro e cansado, cabelo raleando pela depressão com que lutava todos aqueles anos. Seu olhar parecia antever que trilhavam a mesma ribanceira, com a diferença de algumas décadas. Balançou a cabeça para afastar o fantasma e apertou o botão do controle. Sentou-se na cadeira, colocou seu fone e abriu mais uma partida em seu vídeo-game. Tinha que manter o ranking. Não era fácil “Platinar” um jogo novo em pouco tempo, se você não se dedicasse. Afinal, era quase um profissional, havia ganho o Estadual, anos atrás com uma boa equipe de MMO.
Lembrou-se que o noivo era da equipe, mas havia largado três anos antes, para se dedicar ao namoro e aos estudos...Prioridades, dizia ele.
“Não tem nada de errado. Eu paro em meia hora, no máximo uma. É só um pouquinho...”
Pensou, enquanto o sol refletia na moeda de dez anos do AA de seu pai, guardada em um relicário na estante. Ao lado dela, sua coleção de jogos, com cartuchos, cd’s e DVD’s, Action Figure’s, edições limitadas e o troféu do Estadual de E-sports.
“Ao menos ele não bebe igual o pai.” Dizia sua avó.
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Curtas, Contos E Pontos
Tiểu Thuyết ChungHistórias escritas para concorrer "aqui e ali", mas que não passaram no meu filtro, no dos meus leitores beta S2, ou ainda, nos concursos já finalizados Eu os trouxe aqui para uma apreciação de estilos. Leiam, comentem... critiquem. Eu PRECISO de...