BATALHÃO ESQUECIDO
O vento soprava forte sobre o antigo campo de batalhas, agora convertido em terras de pastoreio. As crianças das vilas próximas ainda insistiam em brincar ali, mesmo que os adultos desaconselhassem. Adolescentes, desafiando-se, viam quem conseguia ficar mais tempo sobre a colina, em noites de lua, ou dias de tempestade.
Dizia-se que se você prestasse bastante atenção, conseguiria escutar o sussurro de soldados mortos em tempos passados (anos? Décadas?). E alguns voltavam de lá brancos como papel, ou mesmo desmaiavam. E eram recolhidos de lá pelos colegas.
Mal sabiam estas crianças, que sim, havia um sussurro naqueles montes. Um sussurro repetido por dias, noites e semanas sem fim, enquanto a batalha seguia acirrada, enquanto pólvora era queimada, magias eram lançadas, espadas e escudos eram brandidos e partidos... e enquanto soldados caíam. Ali, Yuden havia vencido. Ali, em meio a tantas mortes, Um cadáver havia sido separado dos demais por ter tido seus ossos pintados de azul. Aos demais, coube apenas a vala comum.
Até hoje.
Durante décadas, sacerdotes foram chamados para realizar suas preces naquele lugar, encomendando as almas aos deuses, o que não havia resolvido nada. Suas orações eram apenas um pequeno curativo em uma chaga que apodrecia tudo em um raio de um dia de caminhada.
Necromantes também vieram, tentando conversar, aplacar os mortos, ou que fosse, trazê-los de volta, para poder exterminá-los depois. Inútil, na mesma medida. Os deuses não respondiam preces ali, por não terem sido respeitados os ritos no tempo certo.
Hoje, depois de muitos anos, era uma visita diferente. Uma guerreira.
Lady Riddara vinha acompanhada de um sacerdote, um clérigo do Panteão – figura rara, pouco poderosa, se comparada com outros devotos, mas com a permissão de todos os deuses para o encargo a que estava destinado nesta noite.
__Minha Senhora, estamos prontos.
__Podemos começar, então. Eu já estou pronta há meses.
__Sabemos disso, Senhora. Mas os deuses exigiram o dia de hoje.
__Eu entendo. Lua de sangue, no solstício, em noite de tempestade. É quando a porta dos planos está mais aberta que o normal, dá para sentir.
__A senhora trouxe a lista de nomes?
__Sim, recuperamos do acampamento soterrado.
Uma rajada de vento agita o manto do clérigo, fazendo-o segurar com firmeza seu tomo e seus símbolos.
Para Riddara, aquilo era irrelevante. O vento passava por suas costelas, penetrava em seu crânio vazio e assoviava em sua cavidade nasal, mas não agitava seus cabelos. Não haviam mais cabelos a serrem agitados, pelos a serem eriçados, ouvidos a serem sensibilizados.
No entanto, ela havia ouvido algo. E pela cara de espanto, a face branca e o tremor perceptível do clérigo, ele também havia escutado:
“Puristas”... “Morte”
Mas Lady Riddara não havia reconhecido nenhuma voz naquele vento.
Nenhum de seus companheiros querendo voltar. Era mais como um soprano do coral que ela ouvira uma vez, dezenas de vozes compondo uma só.
__Você ouviu, Ridley?
__S...sim senhora! Disse o pálido clérigo.
__Você está certo do que vamos fazer? Eu digo isto, porque esta é a minha luta, mas talvez não seja a sua.
Ele limpa o rosto, envergonhado de ter deixado o rosto estampar o medo de seu coração. Engole seco, fita aqueles fossos onde antes haviam olhos e se recompõe:
__Esta é a minha batalha, senhora. Minha luta. Devo dar descanso a estas almas, permitir que elas sigam seu curso para serem julgadas, ou admitidas pelos deuses. Se eu tombar aqui, que tombe no cumprimento do dever.
Ela acena com o crânio em aprovação. Havia aprendido a ser mais gestual, ao longo dos anos de sua nova vida.
Os outros rapazes se aproximam, segurando os cântaros e caixotes para o ritual. Eram acólitos dos deuses, mas ali, eram meros carregadores. Os quatro então abrem a tapeçaria, feita com os vinte símbolos do panteão, além de outros deuses menores.
Um relâmpago corta o céu enquanto eles posicionam os elementos dos deuses: Sal marinho, uma pena branca, um ovo, um dado de seis lados... todos dispostos em seus respectivos símbolos, enquanto Riddara, que já havia lido e relido aquela lista, sentindo uma saudade tremenda de sua capacidade de chorar seus companheiros, com lágrimas e soluços, apenas recitava seus nomes, acompanhados por algum detalhe:
__Keen, deus da guerra e da soldado Lana, que brandia sua alabarda com orgulho e poder. Receba-a em sua morada, assim como seus irmãos de armas.
E a cada deus que era honrado, a tempestade se enfurecia, o vento aumentava e o elipse se aproximava.
O rosto de Tenebra estava já completamente vermelho quando os primeiros pingos caíram e as preces terminaram.
Uma chuva pesada começou, um vendaval tomou as oferendas e um raio acertou a colina.
O sussurro se repetiu:
“PURISTAS!”
“PURISTAS!”
“MOOOOORTEEE!”
Outro raio, parte da colina explode, espalhando terra, trapos e ... ossos.
Um terceiro raio serve apenas de confirmação, mas tinge o céu de azul por um segundo e a terra de branco.
Riddara foi lançada alguns passos para trás e se mantinha de pé, enquanto o clérigo estava desacordado.
Os ossos balançavam ao vento, falanges, dentes e lascas primeiro e depois os ossos maiores. Um redemoinho se forma e acolhe os ossículos primeiro, agregando ossos cada vez mais pesados em um montouro, bem no centro da antiga elevação.
O clérigo acorda depois de alguns segundos e vê a formação se completar, vê Riddara se aproximar e a vê colocar a mão sobre a testa da criatura.
__Meus amigos, vocês cumpriram seu dever perante os deuses e já partiram. Tudo que restou de vocês é o ódio. Ódio da morte, do esquecimento, da desonra... ódio de quem?
E comum som de ossos sendo raspados, ossos ocos batendo uns nos outros, como sem em meio a uma miríade de rãs alguém percebesse algo inteligível, uma voz se formou:
“Puristas.”
__E o que os puristas merecem, meu amigo?
Agora a voz era clara, grave e bem articulada:
__Morte.
__E qual é o seu nome?
O clérigo e os acólitos se aproximam, trazendo os símbolos dos deuses, mas percebendo que ali não havia uma manifestação necromântica, ou uma maldição, ou nada que conhecessem. Aquela criatura era algo novo, uma alma completamente nova nascida não da guerra e do ódio, e sim do desprezo, do esquecimento e das juras proferidas por cada soldado em seu último suspiro. Eles reparam como os ossos estavam agora unificados em uma massa distinta, com crânios inteiros fazendo as vezes de olhos e dentes, fêmures se unindo para formar braços e pernas, costelas de diversos corpos, de várias raças, fazendo as vezes de dedos e artelhos.
__Batalhão.
Eles saíram e deixaram o vilarejo com suas crianças e seus animais em paz, mas levaram morte e terror, no machado de Riddara e nas garras de Batalhão àqueles que os haviam condenado a uma morte sem descanso.Roque Valente.
Meus agradecimentos a Leonel Caldela, que me permitiu usar a Lady Riddara, para esta homenagem aos Esqueletos que ajudaram os Golens em uma batalha que sem sua ajuda, seria invencível.
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Curtas, Contos E Pontos
General FictionHistórias escritas para concorrer "aqui e ali", mas que não passaram no meu filtro, no dos meus leitores beta S2, ou ainda, nos concursos já finalizados Eu os trouxe aqui para uma apreciação de estilos. Leiam, comentem... critiquem. Eu PRECISO de...