XIV

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UM ANO DEPOIS.

Sete da manhã. Eu voltei da caminhada com o cheiro de sal ainda impregnado ao corpo. Tentei não fazer barulho, mas, à primeira pisada mais forte no tapete da sala, o tênis coberto de areia, Luanna apareceu na porta da cozinha.

— Ai, eu não sei o que eu faço contigo, menino teimoso! De novo sujando a sala? – O sorriso, somado à barriga de sete meses sob a camisola, formavam um quadro encantador. Corri para ela e a enchi de beijos.

— E quando ele nascer e começar a sujar também? E aí?

— Ora, o papai vai ter três trabalhos!

— Três?

— É: limpar a própria bagunça, limpar a bagunça do neném e limpar o neném.

Eu fiz cara de esperto e ajoelhei-me diante dela. Apoiei a testa na barriga de Luanna e sussurrei.

— Vamos deixar a mamãe doida, filho. Vem logo.

— Que absurdo!

Sorri, dei-lhe mais um beijo e comecei a limpar a sala. Luanna, porém, continuou parada no mesmo lugar.

— Di...

— Fala, amor.

— Chegaram duas encomendas pra nós... Quer dizer, pro bebê. Mas tem uma... Tem uma coisa pra você.

— Pra mim? Nossa! Eu pensava que agora os presentes eram só pro Aiken. De quem é?

— Um é de Dona Graça...

— Ah, Dona Graça! A gente não pode se esquecer de comprar uma passagem pra ela vir ao batizado. – Deixei a vassoura de lado e encarei Luanna. — E o outro presente, de quem é?

— É surpresa.

— Hum, mistérios... Tá certo. Onde eles tão?

— Lá no quarto. Em cima da cama.

— Eu vou só terminar aqui e vou lá ver o que você tá aprontando.

Terminei tudo e corri para o quarto. Primeiro, peguei um kit para recém-nascidos com vários produtos diferentes. Havia um bilhete de Dona Graça.

"Mesmo na distância, continuamos unidos. Desejo a vocês toda a felicidade que essa nova vida pode – e vai – trazer. Parabéns pelo novo emprego, Papai e Mamãe! Beijos, Graça C."

Saboreei a palavra "papai". Aquilo me deu uma sensação boa. Guardei o bilhete e peguei a outra caixa. Era menor, lembrava mais um estojo de joia. Ao abrir, meu queixo caiu: havia uma pulseirinha de ouro e um pingente com o nome do bebê gravado em prata. A certificação da joia estava toda em inglês, a bandeira da Inglaterra se destacava em meio às outras marcações. Eu tremi e senti aquele velho nó na garganta. A muito custo, puxei o envelope anexo. A letra da carta era bonita. Sentei na cama, a cabeça entre os joelhos. Eu não podia acreditar. Com o coração disparado, comecei a ler...

"Meu querido amigo, há quanto tempo!

Eu não esqueci de você. Nunca esqueci.

Antes de tudo, saiba que você fez, faz e sempre fará parte da minha vida. Boa parte do passado ficou onde deveria: para trás. Mas consegui carregar comigo as melhores lembranças, aquelas que me fazem sorrir quando recordo do Diego brincalhão e cheio de vida que andava comigo anos atrás. Bons tempos.

Quando Dona Graça me falou que Luanna estava grávida, eu fiquei radiante. Eu sei que os últimos anos foram difíceis, mas tenho certeza de que a vinda do pequeno Aiken será uma renovação. E eu sei que você será um ótimo pai. Você adora crianças!

Eu gostaria de revê-lo, é claro. Mas, sinceramente, não me sinto pronta para reencontrá-lo. Não ainda. Já se passaram muitos anos, eu sei. Contudo, quando me imaginei preparada para voltar, quando busquei forças, voltei meus olhos para o Brasil e decidi visitar meu passado, foi terrível. Um martírio, eu diria. Planejávamos ficar um mês. Eu não aguentei nem duas semanas. Entenda: eu não guardo mágoas. Longe disso. Mas algo aqui dentro ainda não cicatrizou por completo. Você entende? E, para preservar as boas lembranças, preferi esperar mais um tempo até as marcas de tudo ficarem mais brandas. Sumir não sumirão, mas ficarão mais suaves, tenho certeza.

Saiba, Diego, que eu tentei te escrever muitas vezes desde que Dona Graça me contou da ida de vocês à escola. Mas eu sempre esbarrava em uma questão: o que dizer pra vocês depois de tantos anos? Eu estava muda. Eu não queria apenas escrever um e-mail, formal e sem vida, lido em uma tela, automático. Eu queria te mostrar um pouco da minha alma através destas palavras, a mesma alma que um dia eu deixei gravada nas pedras daquele jardim. Depois de muito esperar e com a notícia sobre o seu filho, eu pensei muito sobre nossas vidas. Pensei como nunca havia feito antes e, graças a Deus, cheguei a uma resposta para a minha pergunta: gratidão.

Sim, meu amigo, é isso o que eu tenho pra te dizer: muito, muito obrigada!

Algumas pessoas pensam que ser amigo é estar sempre grudado, de mãos dadas. Mas para mim, Diego, ser amigo é algo que supera o tempo, as barreiras e até as próprias vidas. A prova disso é que meros colegas são esquecidos, mas amigos não. A chama de nossa amizade pode ter diminuído, mas, tenho certeza disso, continua acesa. E, quando nos reencontrarmos, ela brilhará mais uma vez e ainda mais forte, pois não terá a poeira dos erros para prejudicar nossa luz.

Por isso, não chore mais, querido amigo. Estamos juntos. Estamos bem. Sigamos em frente. Confie em mim, Diego.

Até muito breve, com todo o carinho,

Angelene G. Bernards."

Eu ergui a cabeça e Luanna me observava com o sorriso banhado pelo olhar marejado por compreensão.

— Acabou, Lu... Finalmente acabou...

— Não, Di... – Ela se sentou ao meu lado e me abraçou. — Esse foi só o primeiro passo do recomeço.

Aiken chutou. Nós sorrimos. Com o queixo apoiado nos ombros de Luanna, a carta de Angelene ainda presa em minhas mãos, eu olhei para a janela. Depois de tantos anos, o sol surgiu entre as nuvens.

***

O Jardim das Confissões PerdidasOnde histórias criam vida. Descubra agora