Jesus

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Em algum lugar da Terra...

Às vezes o mundo humano me permitia momentos de reflexão que não conseguiria ter no inferno, lá as coisas são muito tumultuadas para sequer pensar sem ter algum outro demônio fungando no seu cangote. Desde que me colocaram para trabalhar na Terra eu tenho cada vez mais gostado sinceramente de ficar aqui. Tirando por algumas guerras aqui e ali, algumas que até eu mesmo posso ter a decência de dizer que ajudei a incitar, ainda sim preferia passar meu tempo fazendo algo mais divertido que tentar almas humanas. Eles já se destroem sozinhos com tanta facilidade que quase não vejo muito motivo de estar aqui, sou mais um peão do Inferno junto com Aziraphale para os dois lados acharem que estão sob o controle das coisas de forma igualitária. 

Ah… Aziraphale, a última vez que vi ele não foi lá a melhor delas, desde o dia da destruição de Babel só o vi mais uma vez quando estava no caminho para fora de Gomorra e ele estava falando com outro sujeito que parecia ser um anjo também, pela forma nada natural com a qual tentava se parecer com um humano. Pouco tempo depois soube da destruição da cidade e de outra vizinha chamada Sodoma. Uma verdadeira pena, porque tinha uma ótima taverninha, onde tomava fantásticos coquetéis de tâmara fermentados com noz-moscada e suco de capim-limão, realmente lamentável, os humanos de lá até que eram divertidos, mas o Todo Poderoso não parece gostar muito do tipo de diversão que se achava ali ou da parte da idolatria. 

De qualquer forma… Nos últimos dias ouvi falar de um homem que está se denominando filho de Deus, acho que vale a pena saber o que é por conta dos “milagres” que ouvi falar que ele fez. Espero que não seja outro maluco que abusou demais dos cogumelos alucinógenos.

Estava chegando próximo de onde soube que ele estaria orando e jejuando. Deveria ser realmente difícil chegar até Deus para os humanos - até para alguns anjos era na verdade -, já ouvi falar de outros grandes sábios que tinham o mesmo hábito de não comer em suas vigílias, mas vamos ver como será esse.

-x-

Crawly se aproximou de Jesus e este logo percebeu sua presença, mas permaneceu tranquilo.

- Sei que é um demônio - Jesus olhou em direção a Crawly que estava surpreso pelo humano ter descoberto tal coisa, nunca em dois mil anos algum humano havia olhado para além do que Crawly queria mostrar, para além da magia de ilusão que colocava em seus olhos.

- Deve estar cansado depois de tantas horas aqui sem comer ou dormir. - Jesus nada disse, então Crawly emendou - Se o que diz sobre ser filho do Todo Poderoso é verdade, por que não transforma pedras em pães como fez quando transformou água em vinho? Assim poderia saciar sua fome. - para Crawly aquilo era lógico, pois se o humano tinha um poder desse, ele poderia usar para si mesmo não poderia?  

- Está escrito: “Nem só de pão viverá o homem”

- Não? - Jesus negou levemente com a cabeça, então moveu-se um pouco para que Crawly pudesse se sentar ao seu lado.

- “Mas de toda palavra que procede da boca de Deus” - o demônio o olhou intrigado.

- Como é possível humanos se alimentarem de palavras? - Jesus pareceu sorrir por baixo da barba cheia e mal cuidada que cobria parte do rosto.

- A Palavra é mais potente para alimentar o espírito humano do que qualquer comida poderia ser. - Crawly ainda que sem entender, prosseguiu a conversa.

- Sendo filho de Deus como diz, você poderia passar dias e dias sem comer e não morrer - Crawly parecia ter feito uma enorme descoberta, ficou até mais animado. - Não precisa comer, pois Deus enviaria um de seus anjos para suprir seu corpo certo?

- Está errado. - Jesus respondeu calmamente.

- O que? Por que?

- Sou filho de Quem sou, mas não posso atentar Deus de forma tão baixa. Ele já me dá o que preciso para viver nesta Terra, jamais poderia ser ingrato em atentar Sua misericórdia quanto a mim. - Crawly parou pra pensar nisso e tinha de reconhecer que aquelas palavras o pegaram desprevenido com o quanto faziam sentido, mesmo que parte de si ainda achasse que ele só estava economizando milagres.

- Tá, mas veja - Crawly estendeu sua mão em frente ao rosto de Jesus e esperou que ele desse um sinal que tudo bem, Crawly não sabia dizer o porquê ou como, mas já tinha criado respeito por aquele humano. Então jogou as imagens que queria mostrar na mente do Messias - Todos os reinos do mundo, cada um adora um deus, cada um tem sua própria cultura e costumes, alguns sendo mais benevolentes que outros, você como filho Dele poderia mudar as injustiças e curar o que ainda tem de errado nesta Terra.

- Não tenho intenção de governar o mundo, mas de que através de mim o mundo possa saber que amor é melhor que ódio, benevolência está acima das injustiças, que mesmo numa terra onde todos são livres para fazer bem e mal, escolher fazer o bem torna a existência mais tranquila. - Crawly não poderia estar mais feliz e confuso em ter conhecido aquele humano, ele sabia que por ser um demônio teria sempre de instigar a corrupção nos corações humanos, mas isso nunca impediu a ele de gostar daquela raça tão rica e diversa. - Qual o seu nome demônio? - a pergunta pegou Crawly desprevenido.

- Crawly - Jesus fez um pequena careta.

- Não ficou com muito bom gosto após sua queda - ainda que Crawly estivesse surpreso ele riu.

- Digamos que não foi escolha minha, quando caímos tomamos a forma do oposto ao que fomos e ganhamos a marca de nossos nomes, como esta - Crawly mostrou a pequena serpente que havia ao lado de um de suas orelhas. - No vocal ela sai como Crawly.

- Crowley combina mais com você - Jesus disse ignorando a explicação de Crawly, pois estranhamente parecia que ele já sabia disso.

- Crowley… - experimentou o nome. - Soa bem, ainda que quase não mude muito.

- Menos pérfido do que parece seu dono na verdade - Crawly olhou para Jesus como se ele tivesse duas cabeças.

- Sou um demônio, ser pérfido vem no pacote.

- No dos outros talvez, não no seu. - Crawly não soube mais o que responder quando aqueles olhos castanhos tão cheios de sabedoria desviaram dos seus.

- Bom, foi um prazer Crowley, mas agora tenho que ir. - Crawly nada disse, somente acenou e viu o Cristo se afastar, deixando para trás a sensação de paz e aconchego que Crawly não sentia a tanto tempo que mal se lembrava como era.

- Crowley… Crowley… Hum, gostei.

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