Julgamentos e Missões

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Crowley, após a Queda ...

Estava tão escuro naquele lugar, tão fétido e um silêncio absurdamente alto te fazia enlouquecer aos poucos, te corroendo a sanidade de forma lenta e progressiva, como se degustasse sua loucura.

O inferno não é a mesma coisa para todos.

Depois da queda, fomos todos para um lugar onde iríamos nos refazer, deixarmos por completo a essência divina e nos afundar na loucura e corrupção contrária ao Paraíso. Quanto mais você resiste mais doloroso é aguentar as garras do inferno te massacrando. Esse lugar era como uma criatura viva quando caímos, ele quem comandava, ele quem decidia em que ponto iria te levar até tirar a dor de você. Como garras longas e afiadas você sente elas penetrarem na pele sem piedade ou aviso. Uma dor fria e dura como gelo e a consequência flamejante e dolorida.

Perdi as contas de quantas vezes gritei, implorei, lutei, resisti, caí e levantei, até por fim me entregar de verdade. O Inferno não queria abrir mão da minha tortura, mas eu não queria abrir mão do que era importante pra mim, então no silêncio e breu dali eu fiz um acordo, daria minha essência divina, mas ficaria com o amor que sinto por Aziraphale pra mim.

"Um demônio que sabe amar?" Foi o que senti que ele queria me dizer e concordei. Depois de minutos (que pareceram décadas) se passar meu corpo mudou, pernas e braços se juntaram ao corpo, caí no chão e minha forma foi alongada e minha cabeça mudada. Era um animal rastejante e venenoso, "Uma cobra", ele disse.

"Tanto quanto é simplesmente para uma cobra mesmo sem patas subir numa árvore, será para você mesmo como um demônio saber amar. Isso poderá ser seu maior e pior castigo, pois irá andar com algo no peito que não poderá desfrutar, portanto assim seja. O Inferno aceita o acordo, Crawly." Todas essas palavras foram ditas por aquele lugar como um arrastar de pedras no chão, pesado e denso, mas impossível de não entender.

"Assim seja" foi o que respondi antes de ser jogado para fora daquele escuro para um grande salão onde via Lúcifer, Lorde Belzebu, Duque Hastur e Ligur, todos me olhavam esperam por algo, então retornei a minha forma humanoide com algum esforço.

- Já temos um trabalho pra você Crawly - Eles não iriam se importar com o que passei, pelas aparências que tinham agora eles sabiam e aceitaram o pior.

Me curvei e questionei qual seria a missão.

- Sua primeira tentação - Senti pela primeira vez as instruções serem enfiadas na minha mente sem minha permissão e quando terminado retornei a minha forma de cobra e fui em direção ao Éden.

-x-

Aziraphale, após a Revolta...

Um branco sem fim, um clarão interminável o qual não me permitia ver o que tinha a minha frente. Vozes de lembranças rasgadas tentavam se encaixar em meu livro de memórias, mas nada mais fazia sentido.

Lembrava-me da queda, de todos os anjos de diversas hierarquias que acabaram sendo drenados para o Inferno. Mas havia uma lacuna, uma única lacuna que fazia todo o resto se perder no caminho, faltava algo... Algo muito importante. 

Em um rasgo eu me lembrava de lágrimas, de abraços, promessas, de um sentimento forte demais pra ser ignorado, mas que agora se misturava ainda mais no meio da confusão.

Estava em julgamento. Depois da queda todos tiveram que passar pelo mesmo processo, sem exceções, disso me lembrava bem.

"Esqueça" Ouvia do clarão. "Esqueça".

Era importante, eu sabia que era importante demais para eu esquecer, não poderia me permitir esquecer, pelo menos não tudo. O clarão aumentou, sentia minhas retinas queimarem mesmo com os olhos firmemente fechados.

"Esqueça"

"Me permita um fragmento. Por misericórdia, me permita ao menos a oportunidade de entender", implorei e o clarão se tornou tolerável mais uma vez. Sentia meu coração pesar, mas as páginas tão importantes das minhas memórias foram arrancadas. De joelhos, eu chorei.

"Teu coração continuará a pesar enquanto a resposta não encontrar. Esta é tua única pista, escute-o e entenderá"

O clarão sumiu e a minha frente vi Gabriel, Uriel e Miguel, os olhos cheios de vida que me lembrava virem de Gabriel agora eram somente duas esferas lilases frias e robóticas, Miguel parecia menos altivo ou disposto a liderança como antes me lembrava, o único que aparentava continuar o mesmo era Uriel.

- Anjo do portal do Leste. Aziraphale, levante-se e se recomponha.

"Portal do Leste?" pensei ao ouvir o que Gabriel falou. Me levantei ainda com as pernas bambas, mas tentei me manter o mais firme que pude, endireitando as costas e esperei.

- Eis tua espada de fogo - Miguel me entregou uma espada que parecia muito com a sua, mas não parecia ter a mesma essência que antes a movia fortemente. Na verdade, onde estava a espada de Miguel se não em sua cintura como sempre vira? - Vai agora até o leste o Éden, tua missão é proteger o Jardim.

- E os humanos nele. - Uriel completou.

- Claro. - Gabriel pareceu por um momento voltar a ter emoções além daquela feição estática em seu rosto, mas isso sumiu rapidamente.

Sem questionar peguei a espada e senti para onde deveria ir com exatidão e então num piscar de olhos fui mandado a terra, para o leste do Jardim do Éden, onde senti por fim certo alívio, o que estranhei, pois o céu - até onde podia recordar -, sempre foi meu lugar de conforto.

Andando pelo jardim e pensando nisso senti com ainda mais força aquele peso no meu peito que não sabia identificar o que era, mas era a única coisa que tinha agora, uma sensação angustiante que lhe consumia. Passando por mais algumas árvores vi algo subir em uma árvore com galhos baixos e grossos, se enrolando nela até conseguir alcançar um galho em que pudesse repousar.

"Qual seria o nome que Adão dera para aquela criatura?"

- Qual o nome que Adão lhe pôs doce criatura? - sorri, mas não senti uma resposta vir do bichinho, este somente me encarou com incríveis olhos amarelos e o peso que estava sentindo se aliviou um pouco. Sorri para a criatura. - Você deve ser especial não é? Tem lindos olhos. Não estava me sentindo muito bem, mas depois que os vi me sinto incrivelmente melhor. Deves ser uma criação de especial esmero do Todo Poderoso não é?

O bicho pareceu tanto entender minhas palavras quanto desesperado para se afastar. Talvez tenha ficado com medo, não o culparia, afinal estava com um espada flamejante nas mãos. Quando vi que ele estava indo para o outro lado da árvore para para prosseguir seu caminho me despedi e retornei ao meu posto no portão Leste.

"Que animalzinho lindo", senti meu peito ainda mais leve ao lembrar daqueles olhos peculiares e sorri. "Uma criação linda de Deus".

-x-

Do outro lado do jardim, Crawly ofegava depois de se arrastar para o mais longe possível de Aziraphale e a única coisa que poderia pensar naquele momento era em como tinha sorte e um maldito azar que quase o fazia ter vontade de chorar. 

Tirando esses pensamentos da mente avistou Eva e os frutos proibidos, sua missão estava alguns metros a frente.

A QuedaOnde histórias criam vida. Descubra agora