Os Kurgen

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Muito ao norte, no território da raça dos humanos, havia uma região singular conhecida como "A Província Selvagem". Local onde não se encontrava um Senhor que governasse as terras. Era uma região montanhosa e gelada, habitada por poucas tribos bárbaras e também por criaturas da neve. Os bárbaros permaneciam segregados, lutando entre si constantemente, vivendo da caça e do saque a vilas e fazendas do sul.

O Imperador humano não estava nada satisfeito com a situação, mas pouco fazia a respeito além de enviar algumas tropas vez ou outra para massacrar alguns acampamentos dos selvagens e passar a falsa impressão de segurança para o povo, já que os soldados eram incapazes de rastrear os bárbaros por longas distâncias nas montanhas das quais os mesmos eram nativos.
Certa vez, em uma cordilheira da região, um clã passou a ganhar poder e respeito. Ele era liderado por quatro homens de uma mesma família, sendo o mais popular deles um jovem chamado Arion, do clã dos Kurgen.
Arion tinha apenas vinte e um anos, mas seus feitos já eram lendários. Todos nas montanhas já haviam escutado a lenda do jovem que matou o abominável Argur, uma criatura bestial com grandes chifres negros curvados, grossos pelos brancos pelo corpo todo e um corpanzil que se assemelhava ao dos maiores ursos já avistados no norte. E este não era um Argur qualquer, mas o mais abominável e temível deles. Com mais de três vezes o tamanho de um homem adulto, um olhar penetrante que podia aterrorizar e paralisar suas vítimas, o uivo mais medonho das feras da natureza e um sopro mágico que congelava tudo em seu caminho.
O que poucos sabiam é que Arion só matou o Argur graças a uma armadilha que montou, baseada em um modelo de armadilhas que seu irmão mais velho havia lhe ensinado apenas alguns dias antes. Yosef Kurgen era apenas três anos mais velho que Arion, mas era mais forte e, por vezes, mais inventivo. Infelizmente nunca fora um dos guerreiros mais corajosos, o que o impediu de ascender socialmente entre os bárbaros. O pai deles acreditava que Arion deveria herdar o comando da tribo.
Em segredo, Yosef invejava o irmão caçula. Não com a malícia de um irmão ardiloso, que aguarda uma oportunidade para humilhar e tomar o lugar do outro, mas com uma mescla de admiração, pela coragem de Arion, desejo, pelo renome do irmão, e decepção, por não ter sido ele a pensar em usar a armadilha contra o homem das neves.

....

Em um certo dia, um pequeno pelotão do exército imperial foi enviado para as proximidades das Montanhas da Escuridão, lar dos Kurgen e de seu clã. De cima das montanhas eles puderam avistar o ataque ao acampamento de um outro clã, que estava assentado ali, no sopé da montanha.
O clã das três mães era liderado por uma trindade matriarcal de guerreiras poderosas e temidas. Elas sempre mantiveram uma boa relação com os Kurgen e os dois clãs nunca se confrontaram.
Diante da ameaça aos vizinhos, Arion tomou uma decisão que mudaria para sempre seu destino.
-Nós não temos que ajudar, Arion! Eles não fazem parte do nosso clã.
-Então fique aqui, Yosef! Eu e todos os guerreiros que queiram me acompanhar lutaremos hoje! Não abandonarei nossos conterrâneos precisando de ajuda.
Antes que Yosef pudesse tentar novamente parar Arion, o caçula e duas dezenas de guerreiros já estavam descendo as montanhas geladas em seus cavalos de guerra.
Diante disso ele não se viu com muitas opções, montou seu próprio cavalo e seguiu também para o acampamento vizinho atrás da pequena tropa de seu irmão.

....

A marca mais característica de um soldado imperial, além da armadura segmentada, dos equipamentos de aço e do capacete com um arco no topo, eram as cores de todas as suas vestimentas. Sempre carregando tons de azul, vermelho e dourado, as cores da bandeira do Império Gebraltiano. Além do brasão de um dragão sobre um sol estampado pomposamente em suas capas e forjado no peitoral da armadura de seus renomados comandantes.
O grande exército humano era repleto de subdivisões elaboradas. A menor delas, conhecida como "Otuz", era composta por um número que podia variar entre setenta e dois a cem soldados somados ao seu capitão, responsável por liderar a companhia em batalha.
A companhia de soldados enviada era justamente uma Otuz de setenta e dois soldados. Eles estavam massacrando os guerreiros do clã das três mães, que não deveriam somar mais de trinta, isso contando com as matriarcas.
Uma trombeta soou no meio da batalha, indicando para as tropas militares que havia algo de errado, forçando-os a olhar para trás e, então, perceber que seus companheiros perdiam as cabeças, da maneira mais literal possível. Arion vinha à frente dos selvagens, irado. Ele carregava uma grande marreta metálica com uma haste comprida o suficiente para atingir os inimigos que se afastavam às pressas de seu temível alazão negro, o Fogonegro.
O próprio cavalo não perdoava os soldados, pisoteando sobre todos que encontrava pela frente. Com um rodopio amplo Arion atingiu a cabeça de um soldado distraído com um companheiro imperial que havia caído. O capacete do pobre coitado se amassou até tomar a forma de uma meia lua coberta de sangue. Aproveitando o movimento o jovem bárbaro fraturou o ombro de um outro soldado, que estava pronto para tentar estocar uma lança em seu cavalo.
A essa altura quase todos os guerreiros dos Kurgen estavam no meio do campo de batalha, massacrando os soldados que foram pegos desprevenidos e combatendo ferozmente aqueles que preparavam um contra ataque. Os homens e mulheres que lutavam em nome dos Kurgen eram um total de quarenta e quatro guerreiros, contando com os quatro líderes do clã.
Os soldados começaram a ficar aterrorizados, percebendo a proximidade de uma derrota humilhante e inevitável. Um tenente tentou bradar ordens, mas uma flecha rasgou sua garganta e o fez rolar pela neve suja enquanto golfava sangue. Logo seu pescoço encontrou a lâmina de uma guerreira.
Vanah era a mais forte das três mães, ela tinha o corpo coberto de cicatrizes de batalha, longos cabelos loiros trançados e tatuagens rúnicas espalhadas pelos braços e pelo pescoço. Algumas pessoas juravam que ela poderia matar um homem enforcado com suas pernas e que seu machado de guerra era capaz de voar de volta para sua mão durante a batalha, uma dessas duas histórias era apenas uma lenda, não ousaria revelar qual.
Arion se distraiu ao vislumbrar a guerreira, entre os bárbaros ela provavelmente seria a visão que tinham da mulher mais bela de todo o mundo de Ahlas. Enquanto isso, um soldado mirou seu arco no jovem guerreiro, considerando que o mesmo havia dilacerado sozinho mais de meia dúzia dos militares, ele se tornou o alvo principal.
O som da flecha cortando o ar fez o líder bárbaro reagir, mas ele não foi rápido o suficiente. A flecha atingiu uma abertura em sua armadura de couro tachado e metal segmentado, atravessando suas costelas. Se não tivesse tentado desviar a flecha teria perfurado seu coração, por sorte não foi um ferimento mortal. A dor se intensificou com o vento frio, fazendo-o grunhir. Ele olhou com raiva para o soldado, um rapaz com olhar desesperado e apenas uma orelha, ele havia perdido seu capacete e a outra orelha pouco antes, no meio da confusão.
Arion saltou do cavalo para o chão e avançou contra o soldado que agora jogava o arco de lado e desembainhava sua própria espada. O bárbaro girou sua marreta completando um semicírculo que atingiria o soldado imperial na cabeça, mas ele se abaixou no momento exato e tentou acertar um golpe na coxa de Arion, que teria sido fatal caso o mesmo também não tivesse se desviado.
O soldado não tinha medalhas ou qualquer tipo de ostentação em seu uniforme, a capa comum, dada aos soldados rasos, estava rasgada e as botas de couro revestidas com placas de aço estavam encharcadas de barro e água gelada. Mas, talvez pela vontade dos deuses, naquele momento ele estava lutando de igual para igual com um dos melhores guerreiros das tribos.
O sangue escorria pela perna de Arion, ele podia sentir o líquido quente saindo da ferida e descendo pela armadura. A ponta da flecha se remexia dentro dele, mas tirá-la ali poderia causar um sangramento sério e ele não teria como tratar a ferida. Ele estava em uma situação complicada e o inimigo não demonstrava medo diante dele.
-Qual o seu nome? - perguntou Arion ao soldado.
-Tiberius... - ele exitou - Tiberius Severus... Qual o seu nome?
-Arion Kurgen, do Clã das Montanhas da Escuridão. - ele puxou os cabelos para trás e levantou a marreta com a mão direita, apontando para Tiberius. -Me faça lembrar de sua morte até o fim dos meus dias como um duelo glorioso, TIberius.
O soldado estremeceu ante o desafio, mas então segurou sua espada com firmeza e pegou um escudo abandonado por outro soldado, que jazia morto próximo a seus pés. Ele encarou o bárbaro em silêncio, mas palavras não eram necessárias. O seu olhar transparecia o que estava em seu coração: "não serei eu a morrer hoje!".
O Kurgen avançou primeiro, disparando um golpe pesado que foi desviado pelo escudo de Tiberius. O imperial tentou aproveitar a defesa bem efetuada para atacar, mas sua espada cortou o ar enquanto Arion desviava e partia para uma nova investida.
Sem tempo para se defender bem, a marreta empurrou o escudo do soldado contra o próprio antebraço, forçando-o até de quebrar. A dor extrema teria feito ele gritar, não fosse o fato de estar ocupado rolando pelo chão com a placa de peito amassada por um novo golpe do bárbaro. Ele bufou, recuperando o ar depois da pancada que levou, então tentou se recompor, arrancou o escudo do braço quebrado para tentar aliviar o peso e enxugou um pouco do sangue que escorria da orelha com a mão. Com o outro braço ele apontou a espada para o Kurgen, em desafio. Arion sorriu empolgado.
Ambos estavam tão absorvidos pelo combate que mal percebiam que a sua volta a batalha já estava nas últimas. A maioria dos soldados já havia sido massacrada e alguns membros dos dois clãs formavam um grande círculo observando o épico embate entre um Kurgen e um soldado desconhecido.
Arion avançou, certo de que daria um golpe final, mas Tiberius desviou no último momento e acertou o antebraço do bárbaro, que, por sua vez, atingiu o chão. O corte foi profundo e se estendia da mão até o cotovelo, o golpe fez com que a armadura do antebraço direito de Arion caísse, revelando o sangue que escorria aos montes.
A essa altura a dor já era lancinante, o jovem guerreiro começava a ficar tonto pelo sangue perdido. Tiberius também não estava nas melhores, o ferimento na orelha e o braço quebrado atrapalhavam muito o combate. Não ia demorar para que um dos dois caísse.
-Pelas cicatrizes que eu deixei, certamente não se esquecerá dessa batalha caso saia vivo daqui, Kurgen. - Tiberius girava a espada enquanto ria, satírico.
-É uma pena ter que te matar aqui, você é um guerreiro honrado e luta muito bem. Não deveria perder o seu tempo com um exército estúpido.
Existia uma última opção conhecida por Arion para o desfecho do combate, que não envolvia a morte de um dos dois, mas que era um tanto incomum. Como as tribos viviam isoladas elas não eram completamente hostis a visitantes, dependendo bastante de como eles agiam. Pessoas dispostas a levar iguarias em troca do conhecimento dos xamãs eram bem vindas, por exemplo. Mas existia um tipo de pessoa que podia ser convidada para viver nas montanhas, segundo a tradição dos Kurgen. Guerreiros honrados que demonstram valor em batalha podiam abandonar suas antigas vidas e se tornar parte do clã. Havia muitos anos desde a última vez que algo do tipo ocorreu, mas ainda assim era um costume aceito por todos.
-Tenho que concordar que o exército não é a melhor das opções, mas também não sou muito inteligente. Queria explorar o mundo e proteger o povo, por isso luto com eles. Não poderia ter alguém com motivos mais estúpidos que eu para arriscar a vida nessa batalha.
-Matar inocentes não é proteção para povo algum, seu tolo! - Arion parecia realmente irritado ao falar isso.
-O que quer dizer com inocentes? Vocês saqueiam vilas e matam pessoas do sul sem motivo algum. Não venha me falar sobre inocência, bárbaro! - Tiberius também estava claramente irado.
Os guerreiros se juntavam para acompanhar o espetáculo que passou de uma luta acirrada para um debate ideológico entre dois homens que mal mantinham a consciência. Estavam todos confusos, mas não era surpresa presenciar algo do tipo vindo de Arion. Ele sempre fora racional se comparado a maioria dos membros do clã que estavam preocupados apenas em foder, beber e matar.
-Vocês destroem povoados inteiros, apagam nossas vidas e nossa história! Nós atacamos apenas para sobreviver. Nem todos os clãs massacram vilas inteiras. O clã das três mães nunca invadiu povoados no sul e mesmo assim vocês estavam aqui para destruí-las, matar suas crianças e queimar suas tendas.
O soldado não teve como responder, não estava preparado para este tipo de debate e a dor e o cansaço ocupavam mais espaço do que a razão dentro de sua mente. Ele segurou a espada com firmeza novamente, olhando para Arion.
-Não chegaremos a lugar algum com esta discussão. Eu tenho minha honra de soldado e você a sua de guerreiro. Deixemos que os deuses resolvam quem está certo. O vencedor tem a razão e isso é tudo que importa!
Tiberius levantou a espada e correu na direção de Arion, que também correu em direção a Tiberius tentando levantar a marreta apenas com a mão esquerda, evitando abrir mais ainda o corte do antebraço direito. Ambos tentaram acertar um ao outro e se defenderam simultaneamente. Estavam novamente lutando de igual para igual. A marreta sempre encontrava a espada e a espada o martelo de guerra. Sangue e suor respingaram por todos os lados e a temperatura caia com o fim da tarde. Mais uma vez a lâmina do soldado encontrou a haste do martelo de guerra, mas, dessa vez, Arion chutou o joelho de Tiberius, fazendo-o vacilar. Novamente em um ato de sorte quase divino o imperial não apenas conseguiu se reerguer a tempo de não ter a cabeça esmagada, mas atingiu Arion com sua espada. O corte foi superficial, mas o sangue agora caia pelo olho esquerdo de Arion. O rapaz levou um golpe que o fez ficar com um rasgo diagonal ensanguentado na face, seguindo da bochecha ao nariz e por fim atravessando parte do olho até a testa.
O golpe fez o bárbaro recuar. Tiberius tentou atacar novamente, mas cometeu um erro estúpido. Cego pela oportunidade ele errou seu movimento atingindo a placa de peito do Kurgen com a lâmina, que deslizou sobre o metal e o deixou vulnerável. Arion chutou o pé do soldado, o que o fez tropeçar e, enquanto isso, girou a marreta atingindo a nuca do pobre imperial. O golpe o fez beijar o barro. O soldado não se levantou.
Arion soltou a marreta, respirando com dificuldade. Sangrava bastante e suas baforadas em busca de ar criavam pequenas nuvens de vapor. Ele caiu de joelhos. Os guerreiros do clã se aproximaram prestando auxílio e comemorando a batalha vencida. Todos parabenizaram Arion e alguns caçoaram de sua situação decadente.
Foi então que Yosef interrompeu eles:
-Ele ainda está vivo. - Ele estava próximo ao corpo do soldado, com a mão no pescoço dele. - Deveríamos terminar com a vida dele de uma vez.
-Não! - gritou Arion com suas últimas forças.
Todos fitaram o rapaz.
- Ele é um guerreiro de valor. Vamos levar ele para as montanhas, para o nosso lar. Deixe que os deuses escolham se ele vive ou morre...
Arion desmaiou. Ambos os clãs seguiram até o lar dos Kurgen, as três mães queriam conversar pessoalmente com Arion quando acordasse e decidiram que reunir o clã delas pra ficar provisoriamente escondidos nas montanhas seria o ideal. Tiberius foi levado para ser tratado nas montanhas, mas na situação em que se encontrava seria improvável que continuasse com vida por muito tempo.

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⏰ Última atualização: Feb 27, 2020 ⏰

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