Hannah

𝑪𝒂𝒊𝒓 𝒆𝒎 𝒖𝒎 𝒖𝒏𝒊𝒗𝒆𝒓𝒔𝒐

Até que um dia, num desses nossos jantares ela me disse que a data do tal curso já estava bem próxima e que ia precisar de mais tempo para estudar, então basicamente não podíamos mais sair aos fins de semana ou passear juntos na praia nos dias tediosos depois do trabalho. Por um momento pensei que ela estivesse me cortando aos poucos dos programas que fazíamos, sabe.

— E ela estava? 

— Não não, era loucura da minha cabeça, ela trabalhava de segunda a sexta-feira e tirava grande parte do fim de semana para preparar as aulas e as brincadeiras para os alunos, você lembra, não lembra? Era pouco mesmo o tempo que sobrava para descansar, e na maioria das vezes aproveitávamos esse tempo juntos. Mas agora teria que ser um pouco diferente, ela precisaria desse tempo para se dedicar ao curso, era só isso. Foi totalmente estúpido e equivocado da minha parte pensar aquilo. Estávamos saindo há meses, sabíamos que sentíamos o mesmo um pelo outro e além disso tudo éramos bons amigos. Sempre estávamos nos encontrávamos nas aulas de Yoga, ou no supermercado, íamos juntos até em casa, conversando, as vezes tomávamos café juntos na cafeteria, ou sorvete nos dias quentes, em nenhum momento ela deixou de demonstrar que sentia falta dos nossos encontros, do tempo que passávamos juntos...

— Então você foi levando isso numa boa né?

— Sim, era o sonho dela e eu sabia, ela tinha me contado tudo o que tinha passado para alcançar ele. Essa história era dela, não minha. Eu fiquei bem depois de entender isso, quando pudéssemos ter um tempo só nosso, ficaríamos juntos.

— Deixa eu perguntar, você tinha quantos anos?

— Vinte e seis, vinte e sete na época...

— Sabe que eu acho que hoje em dia muitos jovens não pensam mais assim. Ainda mais no início de um relacionamento. Hoje em dia qualquer problema é motivo para se afastar ou "cancelar" alguém.

Então ele me disse algo que eu nunca vou conseguir esquecer:

— John, quando alguém te quer na sua vida, essa pessoa vai te arrumar um lugarzinho, te colocar lá e vai cuidar de você. 

Eu gosto de pensar que as pessoas são um universo, e quando você se envolve com elas pra valer, você cai nesse universo de braços abertos, sem nenhum tipo de proteção, sujeito a todos os problemas que possam te afetar ali, porque mesmo que não sejam seus, você está ali. Se você quer aquilo, você tem que estar disposto a enfrentar tudo por isso. Só que é importante ter em mente outra coisa também. Todos os planetas, as estrelas, os cometas e os asteroides se formaram antes de você. O que eu quero dizer é que o universo é íntimo e independente, você não tem parte nele até que essa pessoa te confie uma. E ainda assim você não vai poder mudar nada nela, só aproveitar a essência dele.

[...]

Ela fez o curso, passou quase seis semanas fora da cidade. E exatamente no domingo que ela voltava, enquanto eu planejava algo para fazer com ela, a minha mãe me ligou para contar a pior notícia que eu poderia receber naquele dia.

"Filho, você pode vir pra cá?
Precisamos de todos aqui."

Ela disse em um tom de choro.

Eu disse que podia, claro, mas que não estava entendendo nada, pedi para ela me explicar o que estava acontecendo, então ela me contou tudo. Era o vô Friederich.

O nosso Friederich foi embora. 

Foi a pior notícia que eu poderia receber, não consegui fazer mais nada naquele dia, e não falo só de Hannah, deixei tudo que tinha que fazer e fui, não conseguia pensar em nada direito.

...

O velho Friederich deixou muitas lembranças boas. 

Você acredita que ele tinha um álbum com fotos da família e ninguém sabia? Pois é, ele tinha fotos de cada um, fotos que nem sabíamos que existia. E muitas, muitas fotos da vovó.

Ele soube eternizar o amor que tinha por cada um. Não falo das fotos ou das outras coisas...
Eu nos amou intensamente, viveu intensamente, cada fase do jeito que achava correto. Essa beleza que ele via na vida ficou gravada no coração de cada um.
Ele deixou a melhor imagem de pai, de esposo, de amigo.  
Deixou a sua presença e o amor eternos aqui.                                                                                                        Junto com a saudade.

Até tenho saudade de conversar com ele. Ele sempre me falava sobre a vida dele, as besteiras que tinha feito quando era jovem, como conheceu a vó Amália, sobre seus empregos, sonhos... Era ele quem me dizia que eu deveria seguir o meu sonho, virar um escritor, expor meus pensamentos e o que eu sentia, porque isso era bonito e era um presente da vida pra mim, eu não podia esconder.

— Esse era o seu sonho? – perguntei, quase emendando uma outra pergunta: "Porque você nunca me disse?".

— Era sim – ele disse com pesar - mas eu não me levei a sério, parte pelo que a maioria das pessoas sempre diziam e achavam, falavam que arte não dava dinheiro, e a outra parte foi pura insegurança minha, medo de me arriscar e ser criticado.

Foi por isso que acabei escolhendo a minha profissão – ele é gerente de seguros.
Era a única coisa que me interessava além da escrita. Sei que são coisas bem diferentes, mas... Enfim, eu não gosto de falar sobre isso.

— Desculpa te perguntar, mas eu preciso saber. E por favor não se magoa comigo, mas você se arrepende?

[...]