VINTE E NOVE - GRACE

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Um hálito quente e mentolado beija suavemente a pele da minha testa. Com as pálpebras pesadas e lentas, forço meu corpo a despertar.

- Feliz aniversário, Grace... - a voz melódica de Lúcifer ecoa em meus ouvidos. Antes de abrir os olhos um filme começa a ser rodado através da minha memória; sinto uma alegria invadir meu ser como se mergulhasse o corpo em euforia.

- Hum... - abro os olhos e visualizo seu rosto a minha frente. Ele está usando uma camisa social preta, com as mangas desajeitadas nos cotovelos, combinando com a calça, também preta, e sapatos. Está perfeito. - Uau, você é música para os olhos. Está muito bonito.

Ele sorri, claramente surpreso, mas satisfeito. Com um movimento leve, ele me mostra um cupcake enfeitado com glacê, sprinkles coloridos e uma vela pequena. Ela estava apagada.

- Você soprou a vela por mim? - sorrio. Ele encosta a testa na minha e com a mão livre acaricia levemente minhas costas nuas.
Meu santo Deus, estou nua.
Interrompo o momento clichê e puxo o lençol para mais perto do corpo, cobrindo o máximo de pele que pude, até o pescoço.
- Não precisa sentir vergonha de mim, Grace... - Lúcifer coloca o bolinho encima da mesa, ao lado da cama gigantesca, e tira o lençol das minhas mãos - eu vi muita coisa ontem e você é linda, não tem que se esconder.
Encaro seus profundos e escuros olhos enquanto, com um movimento quase imperceptível, a vela do bolinho começa a queimar.
- Você fez isso? - pergunto encantada.
Ele faz que sim com a cabeça.
- Vai ter que me ensinar a fazer isso...

Depois de assoprar a vela do bolo e almoçar no restaurante do hotel, Lúcifer e eu decidimos voltar para o deserto e a caverna que estávamos há dois dias atrás.
Durante o almoço não conversamos muito e isso acaba me incomodando um pouco; peguei ele me olhando várias vezes enquanto comia e isso me deixou um pouco mais feliz.
Decido tentar acompanha-lo com minhas próprias asas e fico feliz ao perceber que tenho sucesso. É cansativo no início, mas depois você sente que aquilo faz parte de você e todos os membros começam a trabalhar juntos.
Tento olhar para baixo o mínimo possível pois a altura ainda me incomoda muito.
Com a brisa leve no rosto e nos cabelos, não consigo impedir minha mente de voltar para ontem. Me lembro dos olhos urgentes dele, do toque e da pele que já sinto falta do contato; e os beijos, o sexo... ainda não conseguia acreditar que tinha realmente acontecido.
Me pego sorrindo sem jeito em meio as nuvens que brilhavam brancas como algodão.

- É lá embaixo, Grace! - Lúcifer desce por entre as nuvens e o sigo com o coração na garganta. Temia muito essa parte da aterrisagem, já que ele estragou totalmente minha primeira experiência com o voo. Tento descer o mais lentamente possível e fico feliz quando os meus pés tocam o chão - ainda bruto demais, mas dessa vez consigo ficar em pé e não cair. Solto um sorriso de orgulho enquanto ele mostra aprovação. - Achei que não fosse conseguir depois da nossa primeira aula.
Faço cara feia.
- Eu também e a propósito, muito obrigada por me traumatizar.
Ele levanta as mãos em gesto de rendição.
- Sinto muito mas se não fizesse aquilo, hoje teria sido muito pior... te garanto.
- Tenho sérias dúvidas quanto a isso, mas... vamos ao que importa: meu presente. - levanto o queixo em sinal intimidador.
Lúcifer revira os olhos.

- Claro, claro... primeiro a parte técnica, depois a parte prática, tudo bem por você, madame? - a provocação não atinge meu semblante e ele suspira descontente mas continua o raciocínio - Geralmente há três tipos de conjuração e cada anjo só consegue produzir um tipo.

- Por que?
- Depende do poder que cada um carrega, por exemplo... arcanjos produzem espadas, querubins lanças, serafins flechas e a classe menor de anjos produz adagas.

- Você é um arcanjo? - Lúcifer sente a surpresa em minha voz e faz que sim com a cabeça.

- Somente eu e Miguel... enfim - percebo seu desconforto e tento não fazer mais perguntas - há também anjos raros, que conseguem conjurar várias armas diferentes mas, eu só vi um até hoje...

- E se eu não tiver arma nenhuma? - sei que minha pergunta foi ridícula, igual quando perguntei sobre ter ou não ter asas, mas não consigo deixar de imaginar que talvez eu não tenha nada de especial.

- Duvido muito que não tenha, Grace... você matou dois anjos. Não sentiu nada depois do que você fez?

Engulo em seco. Tentei não pensar naquilo desde que aconteceu, simplesmente não consigo encarar o fato de que tirei duas vidas.
- Senti um formigamento, mas o que quer dizer com isso? - minha voz parece sumir e fraquejar e Lúcifer não pega leve em continuar falando sobre. Às vezes, gostaria que ele fosse mais sensível as emoções humanas.
Ele acena com a cabeça.
- Quando qualquer anjo mata outro, a graça dele automaticamente é direcionada ao que o matou... portanto, agora, você é mais forte do que antes. É mais anjo que humana e o que você sentiu, foi a graça dos dois "entrando" em você.
Ele faz aspas no ar e o encaro, tentando absorver todas as informações; então lembro de algo que não parecia fazer sentido.
- Um dos anjos que estava no meu quarto aquela noite... um deles tinha uma espada, mas ele não parecia com você, não no quesito poder; eu consigo sentir que você é poderoso e com eles, eu sentia apenas medo, não tinha essa força...
Lúcifer pensa por um momento e balança a cabeça.
- Ele não era um arcanjo, Grace. Aquela espada era uma espada comum, se fosse uma espada de anjo teria sumido assim que ele morreu, já que é feita de energia.
- Então se você morre, a espada vai embora?
- Não, se você a solta, qualquer arma vai embora, e a espada daquele pobre infeliz ainda estava lá.
Olho para ele mais confusa que antes de saber tudo aquilo.
- Vou demonstrar para você...
Lúcifer se afasta alguns metros e fico atenta a cada movimento que faz. Ele fecha os olhos e começo a ficar em choque percebendo sombras se materializando em volta dele. Um arrepio frio invade minha pele e sinto o choque do seu poder na atmosfera a nossa volta.
- O que é isso? - pergunto, claramente assustada com as sombras em forma de gente que ele conjurou.
- É para treinar. Como se fosse um combate.
Engulo em seco. Lúcifer é muito mais poderoso do que imaginei.
Ele abre os olhos e algo parece diferente. Forço a focalizar e seguro um grito surpreso quando percebo que seus olhos estão completamente banhados em escuridão, não há nada em sua esclera a não ser o breu.
De repente as sombras partem para o ataque.
Seus corpos ganham vida e correm em direção a Lúcifer que com um movimento tão rápido, que se eu piscasse perderia, conjura sua espada em uma das mãos, atingindo duas sombras em sua frente. Com outro movimento ele joga a espada no ar, que se desfez como se fosse feita de fumaça. Lúcifer ataca em uma investida de poder, colocando as mãos a sua frente projetando uma espiral que lembra um escudo, lançando-o em direção as sombras, enquanto se lança para cima com um bater de asas, conjura a espada novamente e a crava no peito da sombra.
O combate continua enquanto olho maravilhada para todos aqueles movimentos rápidos e ágeis; temo que jamais conseguirei fazer algo assim.
Quando começo a me acostumar com a espada desaparecendo e reaparecendo, Lúcifer gira uma lança em suas mãos, cortando o ar com ponta fina e afiada, arrancando a cabeça de um dos seres que se desintegrou como todos os outros.
Não, falta um.
Percebo que a última sombra investe contra Lúcifer e o acaba atingindo no queixo. Ele se levanta e com mais um movimento, conjura um arco e uma flecha a sua frente, mirando no peito do ser. Assim que a flecha o atinge ele se transforma em poeira.
Sem demonstrar cansaço ou dificuldade respiratória, Lúcifer caminha em minha direção calmamente e com um sorriso no rosto perfeito, saindo da nuvem de areia que o embate provocou.
Como ele consegue?
- Você... meu DEUS, você... eu nem podia piscar! - pareço uma criança descrevendo que acabou de ver um super-herói em ação e quando percebo isso, paro de falar, mas não escondo a energia que percorre meu corpo quando fecho os lábios.
- Você é a próxima e vai ficar tão boa quanto eu! - ele sorri mais ainda ao ver minha reação e com sua proximidade, vejo que seus olhos voltaram ao normal.
Ele conjura uma única sombra a minha frente, e observando seu rosto, vejo que suas íris parecem  maiores. Engulo em seco.
- Antes de começar... - quando Lúcifer contara que conheceu apenas um anjo que podia conjurar várias armas diferentes, ele não disse seu nome.
- Sim, Grace, eu sou o anjo que pode materializar as armas, mas isso não é relevante...
- Não é relevante? Como pode dizer isso? Lúcifer, você é muito poderoso!
- Eu sei que sou. - por mais que aquilo devesse soar de forma orgulhosa, não soou; as palavras pareciam amargas para ele.
Espero que ele diga mais alguma coisa mas ele não diz.
- Certo, então é minha vez.

A Graça de Lúcifer - Leticia Rovaris (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora