QUINZE - LÚCIFER

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Ao adentrar a Igreja, meus olhos não puderam acreditar no que captaram.
Empousa está por cima de Grace, que sangrava e reluzia. Estava deitada e de cima parecia tão pequena. O grito desesperado dela conseguiu rasgar uma alma que nem sabia que existia em mim, enlouqueci de ódio. Me ceguei.

Mergulho evasivamente no ar, caindo no centro do altar. Em frente a elas.

- Empousa, PARE. AGORA MESMO! - Berro para ela, que não tira os olhos vidrados do rosto inconsciente de Grace. Pobre Grace. Minha Grace.

Empousa é um demônio muito determinado, é muito raro começar algo e não terminar. Se eu não chegasse naquele instante... Grace com certeza estaria morta agora.
Com as asas arqueadas, levanto meus braços, focando um poder diretamente no demônio, atingindo-a no peito com uma pressão concentrada, lançando-a até a porta do templo.
Violentamente seu torso bate nas maçanetas de ferro e seu corpo cai no chão. Um de seus cascos está torto, o que deduzi ter quebrado com o impacto. Engasgada com o medo e o susto, ela se apoia nas mãos e me olha, incrédula.
Abaixo-me delicadamente e tento tirar o máximo possível dos cacos que estavam enterrados na pele lustrosa e reluzente de Grace. Há muitos deles. E o sangue...
Em questão de segundos entendo o que aquela desgraçada queria...
Roubar a essência de vida da minha Grace. A sua graça. O que a mantinha respirando.
O que muitos não sabem é que se um anjo rouba a Graça de outro, seja ele quem for, seu poder dobra, ganhando proporções ABSURDAS. Mas para quem ela queria aquela Graça?
De uma coisa eu estava muito certo... não queria matá-la. Não mais. Algo estava diferente.
Vendo-a inconsciente, respirando com uma dificuldade preocupante, vou até a bastarda ingrata que tentava inutilmente se levantar com os cascos quebrados. Suas patas estão tortas e sangram de uma maneira que o escarlate lavava o chão de madeira, como se um balde de tinta tivesse derramado acidentalmente.

- O que eu disse sobre ela ser SOMENTE MINHA? - rosno violentamente avançando três passos em sua direção. Projeto a voz diretamente para ela, gritando tão alto que, se os vidros estivessem ali, eles voltariam a quebrar. O chão vibra.

- Mas Mestre... tu me mandaste mais cedo para... - as palavras de sua boca saíram fracas e quase sem coerência. Se eu não tivesse uma ligação com aquela criatura, não a teria entendido.

- EMPOUSA, por acaso acha que sou tolo? Idiota? Burro? Eu criei a mentira, criatura inútil... EU fui o primeiro a enganar alguém... Você acha mesmo que seria capaz de mentir? Talvez para algum ser sem utilidade, escória do mundo, não para um Rei - estapeio sua face e a lanço por cima dos bancos do templo. - Não minta na minha presença! NUNCA!

- M-mestre... Não estou mentindo... O Senhor veio até... - não podia ser... ela não está mentindo.

Então, quem?

- Empousa... Eu, Lúcifer, alguma vez me levantei para procurar você, em todos esses anos? - solto um riso incrédulo.

Seu rosto se contorce em confusão. Ela percebe que foi enganada.

- Volte para o Inferno e diga que conseguiu matá-la. O primeiro que comemorar... me deixe saber. Temos um traidor entre nós, Empousa... Mas antes...

Ela tenta se levantar e para com o meu "porém".

- Não pode sair ilesa desse erro absurdo.

Sua cabeça balança violentamente em medo e negação.
Estalo os dedos, fazendo-a sofrer.
Cada célula do corpo de Empousa pega fogo; primeiramente seu rosto e depois o resto do corpo, como um buraco negro explodindo, com um grito ensurdecedor, ela se desfaz, deixando para trás apenas a poça de sangue fétido.
Meus braços formigam pela recém descarga de energia depositada no corpo do demônio.
GRACE. FERIDA.
Em uma fração de segundos, seu pequeno corpo magro e fragilizado pela perda de sangue, está nos meus braços.
Eu preciso levá-la em segurança para algum lugar.
Dar um jeito de estancar o sangue, acabar com sua dor.
Acordá-la.
Minha mente fervilha com o fato d que ela está sofrendo.
Pobre Grace...
Subo com os pés descalços na viga dos vitrais quebrados, e voo noite adentro, a caminho da casa dela.
Por que Empousa disse que a ordenei matá-la? Algo não está batendo... alguém se passou por mim e só há dois seres capazes de tal proeza.
Miguel e Kesabel.
Kesabel não me desobedeceria... ou o faria?
Miguel faria de tudo para me fazer perder a cabeça...
Mas se houvesse um anjo no Inferno, eu saberia, não?
Um espasmo percorre meu corpo quando penso na possibilidade de não ter chego a tempo.
Grace estaria morta. Empousa teria pego sua graça... e seu corpo sem respiração teria ficado para trás.

A pele de Grace começa a ganhar um pigmento acinzentado, e minha preocupação aumenta... ela estava entre a vida e a morte. Não posso deixar isso acontecer. Preciso dela. Viva...
Se ela parasse de respirar... voltaria para o lugar de onde veio e eu nunca mais a veria...

Os cortes sangram vagarosamente agora. Forço minhas asas a ir o mais rápido possivel.
A janela de Grace estava escancarada (por que abriram desse jeito?).
Antes de mergulhar para dentro, paro no ar.
Uma presença divina emana de dentro do cômodo, o que faz uma desconfiança remexer em meu peito.

O Anjo que desceu está ali. Parado no canto. Com os olhos vidrados no chão.

- Ora, ora, ora, se não é o recém chegado... - uso a ironia, pegando-o de surpresa, enquanto coloco o corpo fraco de Grace em sua cama.

- Lúcifer. O que você fez? O que está fazendo? - ele parece irritado e temeroso, rapidamente projeta uma adaga prateada em uma das mãos, ficando na defensiva.

Ele, obviamente, acha que eu a tinha ferido.
Olho com cuidado para a adaga.

Todos nós, anjos, sem exceção, possuímos uma arma quando projetamos a aura em determinado ponto. É como se transformássemos nosso poder em matéria.
A dele, é uma adaga.

- O que te traz aqui? - ignoro-o, concentrando meu poder no corpo de Grace, fazendo os fragmentos de vidro saltarem para fora de sua carne. Alguns tilintam quando caem no chão.
O rosto do anjo me encara, incrédulo. Ele percebe que não estou matando Grace, e sim ajudando.

Ainda com a adaga na mão, ele diz:

- Vim avisar Grace sobre o que está acontecendo no céu... Estive aqui mais cedo. Mas agora... aconteceu algo muito pior... e ela precisa saber. Talvez Grace seja a nossa única salvação...

Ciente de que, quando ele usou a palavra "nossa", se referia aos anjos que ainda moravam no Céu, balanço a cabeça.
Claro...
Os anjos obedientes, os certos, os puros. Até onde sabia, já não era nem considerado um anjo. Os nomes que certos humanos usam para se referir a mim, são hilários. "Capiroto" é o que mais me faz rir.

- Quem é você afinal? - olho-o. Agora focando em fechar os cortes abertos que, agora, pararam de sangrar. Me sinto confuso, pois a respiração dela está muito, muito lenta.

- Anael... - o anjo toma alguns passos adiante, e, relutante, começa a ajudar na cura de Grace. Sua energia é muito mais quente e harmoniosa que a minha. Faço cara feia.

Queria ajuda-la... mas não sou... bom para ela.
Quero poder mudar isso, mas não sei como.
Volto a realidade em segundos.

- Anael... A Graça de Deus. - sorrio indiferente. - Se não se importa... tenho uma pergunta...

Anael paralisa e me encara novamente, com os olhos verdes vibrantes

- O que você quer? - ele remexe as asas inquieto.

E se Anael fosse um traidor também?

Detesto correr riscos. ODEIO mais ainda não saber das coisas.

- O que aconteceu no céu? - não dirijo os olhos para ele. Antes que Anael responda, peço um minuto e com um cuidado que nunca precisei ter antes, desço as escadas, buscando água e uma gaze, preciso limpar as feridas.

Volto rapidamente e faço sinal para que ele fale.

- Miguel... ele está incontrolável... não entendo o que aconteceu, mas ele está determinado a ter... você sabe, a Graça dela. Ele quer ficar mais forte.

Agora o encaro. Não consigo piscar. Miguel está atrás dela.

- Onde seu Pai está quando realmente há um filho rebelde? - uso a aspereza combinada com o desprezo que possuo por aquele nome.

Anael está incrédulo com minha pergunta. Fica com a boca aberta, me fitando com surpresa.

- O que há com você? - vocifero. Mesmo Grace, agora mais parecida com a Grace de antes, me acalmando, o ódio por Empousa ainda está em minha corrente sanguínea.

- Eles estão atrás de mim... - Anael responde. - Deus não está lá.

- A artilharia de Miguel e alguns demônios, mas isso eu resolvo...

Congelo.

- Anael... precisamos protege-la. Meu Pai não a fez para ser morta... - o sabor daquelas palavras é amargo em minha língua. Mas eu preciso fazer isso.

- Eles já estão planejando... roubar a Graça dela.

- Eu sei. Ela tem a minha graça...

Anael sorri nervosamente.

- Lúcifer... você nunca perdeu a sua Graça.

Aquele patife está me irritando...

- O que você quer dizer com isso, anjinho?

- Você nunca perdeu sua Graça. Miguel não a tirou. Se o tivesse feito, você não teria o poder que tem... Nunca notou isso? Logo você?

A casa treme levemente. Não tiro os olhos dele.

Sinto o poder formigando minha pele.

- Calma, Lúcifer... estou do seu lado aqui... - ele levanta as mãos, mostrando rendição - Ela pode até ser parecida com você, mas não é a mesma Graça; ela é metade humana. Esqueceu?

- Escuta aqui... - respiro fundo - Seja claro e objetivo. Não dê voltas. Conversas longas me irritam, então... COSPE PARA FORA LOGO!

Anael respira fundo. E começa uma história longa e pesarosa.

A verdade é que, Deus fez mesmo outro Anjo de Luz. Mas Grace era Grace. Nunca foi usada para me substituir. Quando ouço essa parte, meu ego é acariciado. Ainda sinto algo inexplicável, mas tudo muda.
Ele continua contando que tudo aconteceu, porque o pai de Grace, se apaixonara pela humana que protegia. Assim escolheu ficar na terra. Deus deu a mortalidade para seu corpo, mas não tirou sua graça, fazendo com que o anjo Philip fosse um humano especial.
Para demonstrar amor e admiração por aquele sentimento tão lindo, Deus abençoara Grace, com Luz... a Luz que eu costumava ter.
Perplexo por tudo aqui, não consigo abrir a boca para contestar absolutamente nada.
Tudo fazia sentido.
Tudo.

- Anael... precisamos nos preparar. Miguel com certeza virá atrás dela e não podemos deixar isso acontecer... - estranho minhas próprias palavras.
Há 48 horas atrás tudo o que eu queria era dizimar esse ser. E agora, não consigo imaginar-me retirando sequer um fio de cabelo.

O outro anjo parece surpreso com meu comportamento, tanto quanto eu.
Porém não faz perguntas.
Diferente de mim, que me questiono a todo momento.
O que estou fazendo? Por que estou fazendo?
Encaro o rosto tranquilo de Grace, que agora por um milagre, respira sem dificuldade.

Começo a pensar em como contar para ela e fazê-la acreditar em mim.

A Graça de Lúcifer - Leticia Rovaris (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora