Nos dias que se seguiram eu fiquei repassando mentalmente todos os detalhes daquela noite, tentando achar alguma pista, qualquer coisa que me esclarecesse o meu papel naquilo tudo. Se é que eu tive algum papel além do de mero espectador. Quase que esperei também que algum policial batesse à minha porta com algum tipo de acusação, afinal eu fui a última pessoa a vê-lo vivo. Mas ninguém apareceu. E o pouco esclarecimento que surgiu, veio só alguns dias depois quando navegava pela internet a fim de me distrair e me deparei com a notícia de sua morte que só mereceu algum tipo de menção por ter se dado perto de um conhecido marco histórico da cidade, coisa que eu nem imaginava.
Descobri seu nome real, Paulo, e que era um professor particular de piano. Não parecia ter nenhum histórico de doenças depressivas, segundo relatos dos poucos conhecidos entrevistados pela breve reportagem, mas um dos possíveis motivos que encontraram para justificar aquele suicídio foi o que me chamou a atenção. Pouco mais de um mês antes, Paulo perdera o melhor amigo, Erick, cuja foto que acompanhava a notícia poderia ter facilmente sido uma das minhas. Tirando um ou outro detalhe, o garoto da foto parecia demais comigo. Essa constatação me deixou extremamente angustiado. Se por um lado, algumas coisas pareciam se esclarecer, outras muitas dúvidas surgiram.
Atormentei-me com isso ainda por um tempo, e nisso fui me vendo doente, por não comer ou dormir direito e ainda perdendo clientes, já que não conseguia coragem para atender mais ninguém. Nesse período também me enfiei em profundas reflexões existenciais, sobre quem eu era e o que eu queria para minha vida e meu futuro. Saí disso após tomar algumas decisões fundamentais e decisivas que logo tratei de colocar em ação.
Mudei-me para um apartamento mais barato e mais fácil de manter, me inscrevi num curso de psicologia, dispensei meu personal trainer caro e guardei o resto da minha grana numa poupança. Também mandei uma mensagem de despedida aos meus clientes, logo antes de eliminar o meu site e me livrar de todos os laços que me ligavam à minha antiga profissão. Ou os aqueles sobre os quais eu tinha controle, é claro. Sabia que teria que encontrar logo alguma outra coisa para me manter e que provavelmente teria que viver uma vida bem mais regrada, mas por ora a ideia não me assustava mais. Ao contrário, de repente me vi bastante animado pela enorme gama de possibilidades que meu futuro parecia me reservar.
Claro que o que aconteceu naquela noite foi um gatilho pra mim, mas a verdade é que há tempos eu andava um tanto infeliz com a vida que tinha, mesmo tentando acreditar na ilusão de satisfação que vendia aos demais. Uma ilusão que se tornara impossível de manter depois que tive que passar por tudo aquilo que passei sem ter com quem compartilhar minhas angústias, já que nunca deixara ninguém se aproximar o suficiente.
Sabia que não seria fácil esquecer, aquilo e outras tantas coisas que tive que passar em minha vida. Mas com a terapia que havia iniciado ao mesmo tempo em que a faculdade, e todas as outras mudanças de vida eu sentia que tinha uma chance de conseguir superar.
Quanto à solidão, bem, ela também andava um pouco menor desde que encontrei por acaso certo loirinho na academia da faculdade que passei a frequentar, aproveitando-me do desconto de estudante.
Foi numa tarde meio gelada de um inverno que havia recém começado, e as lembranças daquela noite de verão eram apenas um borrão. Eu tentava me aquecer na esteira, concentrando-me em aumentar a velocidade das passadas, quando percebi a esteira do lado sendo ocupada. Não dei muita atenção. Socializar com as outras pessoas em um ambiente cotidiano era algo que ainda estava reaprendendo. Corremos lado a lado por um tempo, até que terminei a minha série e fui beber água em um bebedouro ali perto. O lugar estava meio vazio aquele horário e percebi quando a figura da esteira chegou perto de mim. Mesmo sem tê-lo visto de fato, sabia que era ele.
Virei-me para o garoto, porque não parecia mais do que um, e estudei sua figura. Havia algo de conhecido nele, mas demorei um pouco para reconhecê-lo de fato. Ele parecia estar na mesma situação que eu, já que me encarava com dúvida em seus olhos azuis. Seu rosto estava vermelho da corrida na esteira e os cabelos loiros um pouco grudados na testa, o que me trazia lembranças difusas. Então ele sorriu malicioso e eu o reconheci.
-Enzo. – ele disse, me dando a mão direita em um cumprimento espontâneo.
-Mikkail – eu respondi, também sorrindo enquanto apertava sua mão pequena e gelada.
-Imaginei que não fosse João.
-Mas combina tanto comigo!
-É verdade, mas prefiro Mikkail.
Achei graça de sua tentativa de falar meu nome. Também fiquei um pouco surpreso por ele não ter mentido o nome naquela noite, assim como secretamente satisfeito por isso. Tão satisfeito que me vi convidando-o para um café logo depois da academia. Ele aceitou o convite e bem, o que veio depois compete apenas a nós dois. O que vale é que a minha vida nunca esteve tão boa. Eu nunca aceitaria menos do que isso.
до свидания!
VOCÊ ESTÁ LENDO
Montanha Russa ✓
Short Story"Nessa vida eu já estive no topo e já quase fui ao chão, mas nunca desisti do passeio. Te convido a embarcar comigo para uma breve voltinha." - aceitamos sugestões de sinopse. OBS.: História completa (heeeee o// ), mas com espaço para vários ajusta...