Capítulo 03 - Elise

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Naquela noite, Bárbara mandou que vestíssemos nossomelhor uniforme, o que significava que eu não estava vestida de menino, masusava um vestido cinza, totalmente sem graça e muito longo. Eu pisava na barradele e temia o que poderia acontecer com a famosa sopa na hora que fosse servircaso o fizesse. Carmine foi a primeira a descer, usava um vestido amarelo comfaixas roxas amarradas em volta de seu corpo, que não ajudava sua aparência,deixando-a acesa e um tanto rechonchuda. Ela me perguntou como estava e eu disseque linda, concentrando-me mais naquela bondade que eu sabia que vivia dentrodela e que ela demonstrava de vez em quando. Mas bem que o tal príncipe podianão ser um completo idiota e se interessar por Carmine ao invés de Clarisse.

Por falar em Clarisse, ela usava um vestido verde, muito rodado que a fazia parecer-se a uma princesa. Estava linda, mas eu imaginava que o príncipe estaria cansado de ver princesas. Se eu fosse me vestir para atrair a atenção dele, usaria um vestido mais justo e decotado. E foi exatamente o que Bárbara fez. Mulher esperta. Ia jogar a filha nas mãos do príncipe, mas não se importava se fosse ela mesma a se casar com ele. Bárbara já desceu as escadas dando ordens e ficou enchendo nossa paciência até que alguém bateu na porta. Nesse momento eu corri para a cozinha e pude soltar o espirro que estava prendendo até então.

Houve um burburinho entre as criadas quando o príncipe entrou na casa, e as meninas vinham para a cozinha coradas repetindo como ele era lindo. Ele era o sonho de cada uma delas. Eles ficaram um tempo conversando na sala de estar e então Bárbara tocou o sino para que servíssemos a entrada, a famosa sopa de mariscos. Espirrei uma última vez antes de sair, puxei a barra do vestido para cima e me certifiquei que minha trança estava bem apresentável. Peguei a travessa com a sopa e fui seguindo as meninas como Bárbara havia nos ensaiado para fazer. Assim que entrei na sala de jantar, avistei o porte alto e másculo do príncipe e uma cabeleira negra, que parecia muito macia ao toque. Voltei meus pensamentos para a mesa e, quando ia colocar a sopa sobre ela, o príncipe olhou para mim e não fui capaz de discernir mais nada. Era ele! O maldito pervertido! Ele era o príncipe! Com o susto soltei a travessa que deu um baque ao alcançar a mesa, e Bárbara imediatamente ralhou comigo:

— Qual o problema, Borralheira? Acaso perdeu sua coordenação motora?

— Perdão, senhora.

Ele não tirou os olhos de mim, e pude ver em seu rosto um sorriso que tentava esconder. Idiota! Servi a todos na mesa deixando o imbecil do príncipe por último. Enquanto o servia, ele permaneceu com o olhar cravado em mim, e não desviou nem quando Clarisse pigarreou para chamar sua atenção. Lembrei-me das palavras dele, dizendo que nunca havia visto uma mulher tão linda quanto eu e me senti corar. O sorriso dele surgiu no rosto quando percebeu que eu corava. Ele era lindo! Malditamente lindo! E um perfeito imbecil. Bem que ele podia mesmo se casar com Clarisse, os dois se mereciam.

Terminei de servi-lo rapidamente e ia escapando, quando ele me chamou.

— Senhorita, creio que minha sopa está fria.

Eu fingi que não o ouvi e tentei escapulir assim mesmo, mas Bárbara, obviamente, me impediu.

— Você não ouviu o que ele disse, Borralheira? Volte aqui e sirva novamente a sopa ao príncipe.

Enquanto Clarisse tagarelava sobre o reino, vestidos e coisas fúteis, ele não tirava os olhos de mim. Retirei a sopa que já havia colocado e queimei minha mão ao acreditar que ele estava certo em dizer que estava fria. Então olhei para ele com uma careta, mas ele permaneceu com a mesma expressão, apenas me olhando. Troquei a sopa por outra quente do mesmo jeito que a anterior, e ia me retirando, quando ele disse.

— Ainda não está quente o bastante.

— Faça seu trabalho direito, volte aqui e sirva a sopa ao príncipe mais rápido! — ordenou Bárbara claramente irritada.

Ele me enfureceu. Voltei batendo os pés, peguei a sopa que havia acabado de servir e novamente queimei minha mão, mas aguentando a dor e o calor, ergui a caneca diante de seus olhos, a fumaça saindo por ela diante de seus olhos, e disse com falsa calma:

— Como está vendo, Alteza, a sopa está perfeitamente quente, vê como minhas mãos estão vermelhas por causa do calor?

Ele abriu um sorriso e olhou minhas mãos, então uma expressão fechada tomou seu rosto ao avistar os curativos. Durou poucos segundos antes que dissesse:

— Não creio que esteja quente o suficiente, senhorita.

Então uma catástrofe aconteceu. Aquela chavinha que temos na cabeça, que separa o certo e o errado, o devo e o não devo de jeito nenhum, foi lamentavelmente desligada da minha. Não tive outra saída, como se a fúria controlasse meus movimentos, virei a sopa na cabeça dele.

Ele imediatamente deu um grito e o caldo amarelado escorreu por sua cabeleira negra e suas vestes reais.

— Está quente o suficiente agora? — perguntei docemente.

Mas sequer tive tempo de ouvir sua resposta, claro. Bárbara levantou-se como um urso furioso e me pegou pela trança, lançando-me ao chão enquanto gritava:

— Sua Borralheira! Como ousa cometer um atentado desse contra o príncipe? Você irá para a forca!

Eu sabia que ela estava certa, o que eu tinha feito dava ao príncipe o direito de me punir com a morte. Mas não importava, ele estava queimado e eu estava vingada. E a chavinha só estava voltando ao seu posto naquele momento. Bárbara levantou a mão para me acertar ali, diante dele, mas ele a segurou.

— Não! — gritou impedindo-a.

Todos à mesa e em volta dela olharam para ele espantados, inclusive eu.

— Não precisa disso, senhora Barsel, tenho certeza que a menina não fez por mal. E eu mereci, a sopa está realmente quente.

Por um minuto inteiro ninguém se moveu ou proferiu qualquer palavra. Em seguida, ele soltou a mão de Bárbara, as criadas continuaram limpando-o e eu corri dali antes que Bárbara se recuperasse do seu choque.


Marlee ainda me dava um sermão uns dez minutos depois, quando as meninas na cozinha arquejaram em espanto e atrás delas, ele apareceu. Esperei que tivesse ido me dizer a hora que eu deveria comparecer à praça para o evento do meu enforcamento por dar um pequeno banho no príncipe, e antes que ele se aproximasse de mim, espirrei. Estava nervosa, não conseguia controlar os espirros. Ele se deteve quando fiz isso, e depois deu dois longos passos até mim, segurando minhas mãos.

— O que aconteceu com suas mãos?

— Como?

— Por que está com esses curativos?

Eu pestanejei. Não era um horário para meu enforcamento? Não era um sermão real sobre meu mau comportamento? Era preocupação em sua voz? Onde ele queria chegar com aquilo? Como não respondi, Marlee tomou a frente.

— Foi a senhora, Alteza. Ela castigou a menina por causa da gripe.

Ele soltou minhas mãos e ficou dando voltas. Soltava xingamentos furiosos andando de um lado a outro na cozinha.

Um príncipe em uma cozinha era algo quase impossível de se imaginar.

— Perdoe-me, sinto muito que tenha pego um resfriado. Mandarei hoje mesmo o médico do castelo para examiná-la.

Sorri debochada.

— Não será preciso, Alteza. Antes que o senhor chegue ao castelo, ela já terá me jogado no poço.

Ele arregalou os olhos.

— Isso não irá acontecer. Não se preocupe, irei garantir que nada de mal lhe aconteça. O médico virá atendê-la aqui, não é um pedido — disse antes que eu pudesse protestar.

Só me restou concordar, assenti, mas não agradeci. Meu orgulho não permitia, eu havia sido humilhada demais na frente dele. Ele me olhou por um tempo ainda e se afastou. Quando chegou à porta, disse:

— Muito bom te ver finalmente vestida como uma mulher. Fica mais linda assim.

As meninas arquejaram de novo e ele saiu da cozinha me deixando com uma sensação de derretimento, que logo fiz questão de afastar. Ao menos fiz muito esforço para isso.

Desencantados - COMPLETO ATÉ 11/01/23Onde histórias criam vida. Descubra agora