3ª história - Ela do espelho

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Tudo havia começado há mais ou menos duas semanas, quando ela veio passar um tempo na casa da avó. Foi logo depois que sua mãe tentou cortar seu cabelo e jogou pela janela seus poucos vestidos. Ela não se sentia mais segura naquela casa, ameaçada constantemente pela mulher que berrava "Eu coloquei você neste mundo e posso te tirar dele quando quiser!"

Desde muito jovem sentia que não era quem devia ser. Sempre teve certeza de que era uma garota, mesmo quando todos diziam que não e a repreendiam por ter comportamentos ditos como femininos.

E foi quando finalmente aos 16 anos, criou coragem e se assumiu para a família.

Ela era uma garota e faria todo o possível para adequar seu corpo com como se identificava. Infelizmente, nada foi simples e após os constantes ataques violentos da mãe, recebeu abrigo na casa da avó materna, o que foi uma surpresa, mas, enquanto a idosa a abraçava e chamava-a pelo nome que havia escolhido para si, ela viu que a mãe e a avó eram pessoas totalmente diferentes.

Logo que desceu do ônibus sentiu como se os olhares de todas as pessoas da cidade estivessem fixos nela, analisando-a sob a pele, debaixo da carne, até os ossos e em uma resposta involuntária,sentiu seu estomago afundar alguns centímetros, mas todo o mal estar se evaporou quando viu sua avó na plataforma da rodoviária.

Aquela velhinha diminuta e gentil que ao vê-la, abriu os braços em uma manifestação muda por um abraço. Ela sentiu os braços mornos envolverem suas costas esguias e seus braços longos e era tão quente, tão bom, tão seguro. Quis chorar, mas se conteve, afinal, pela primeira vez desde que se impôs por quem era, se sentia segura. Talvez não totalmente, afinal, aqueles olhares das outras pessoas lhe causaram um misto de pavor e receio, mas naquele momento, naquele abraço, sentia-se protegida.

Foram para a casa da avó no velho cadilac azul que fazia uns sons estranhos conforme andava, mas que para ela era a melhor memória nostálgica do mundo. A avó era viúva e se sustentava mantendo uma pequena horta da qual vendia seus produtos para os moradores da cidade. Ouviu a velhinha contar sobre como as abóboras estavam grandes e que logo dariam ótimas lanternas para o Halloween.

A mente dela, no entanto, estava longe, ainda pensando nos momentos dolorosos que passou com a mãe antes de finalmente fugir. Em seu braço direito havia um corte enfaixado, e que às vezes ainda sangrava. A mãe a havia atacado com uma faca de cozinha e em sua mente jovem, não conseguia parar de se perguntar como uma mãe podia odiar tanto alguém que até alguns anos ela dizia amar e jurava proteger? A dor era forte demais e ela só podia agradecer mentalmente por ter o apoio da avó.

Conhecia outras garotas na mesma situação que foram expulsas de casa, que foram surradas, que sofreram todo tipo de violência imaginável e até algumas inimagináveis, que estavam sozinhas, desprotegidas, desesperadas e assustadas. Elas nunca tinham certeza se iam acordar vivas no dia seguinte. Várias delas desapareciam no meio da noite para sempre e ninguém sequer sentia falta delas. E em silencio, ela se compadecia por elas, suas irmãs emocionais.

Quando o cadilac parou, sentiu que lágrimas mornas escorriam por suas bochechas macias e as secou com cuidado, para que a avó não notasse. Não queria deixá-la chateada. Elas desceram, tomaram um café da tarde e então a avó lhe mostrou seu quarto.

– Aqui era o quarto da Elizabeth, quando ela ainda era criança... Espero que não se incomode de dormir aqui, meu bem. – era o quarto da sua mãe e ao ouvir isso uma pontada dolorosa acertou seu peito, mas ela sorriu e agradeceu a avó, dizendo que não havia problema algum. Adorava quando a avó a chamava de "meu bem" e a mulher fazia isso desde que ela se entendia por gente, desde que conseguia se lembrar das primeiras visitas da avó e aquele apelido carinhoso e sem gênero era como uma pequena gota de suavidade em toda a dor que ela estava enfrentando.

Nuances do HorrorWhere stories live. Discover now