PRÓLOGO: lembranças de lugar nenhum

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Ilha do Céu, oceano de Maralto – 297 p.i

O GRITO VEIO logo depois do despertar súbito naquela noite chuvosa repleta de trovões. O aperto desconfortável no peito e a falta de ar, como se algo muito pesado repousasse em cima do rapaz, fez com que o jovem se levantasse com certa dificuldade.

Com a boca entreaberta, tentando pegar o máximo do ar gélido que guardava a Ilha, colocou a mão trêmula em uma das grades de pedra, observando pela janela trancada o mar negro e revolto. Parecia que, a qualquer momento, as águas engoliriam aquele pequeno pedaço de terra onde todos se encontravam.

As íris amareladas e opacas se iluminaram com um raio que caiu próximo á masmorra, e sua testa estava tão suada que lhe parecia estar até mesmo em estado febril.

De forma insistente, sua mente o levou novamente para com o que sonhara. Balançou a cabeça, insistente em não querer saber o que aquilo significava, mas os terríveis sons não o deixavam em paz e se esgueiravam por seus ouvidos, como súplicas e lamúrias de pessoas que nem mesmo conhecia.

Foi então levado a se lembrar dos primeiros pesadelos que ele teimava tanto em não querer a mínima memória.

Desviou o olhar para o abdômen onde, outrora, se viu com uma lança enterrada no mesmo. O gosto de sangue que sentira lhe voltou a boca e umedeceu os lábios, tentando se esquecer. Conseguia sentir perfeitamente a sensação do metal incandescente - posto anteriormente na fornalha - rasgando e ferindo sua pele. O cheiro de carne queimada lhe dava náuseas, e seus gritos entrecortados e aterradores vinham logo depois que o carrasco começou a mexer com a arma dentro do rapaz, numa das piores torturas que já havia visto.

Estava sozinho, completamente sozinho. Sempre esteve, na verdade. Desde que adquiriu pensamento próprio e soube que a figura sem rosto preciso que lhe atormentava os sonhos quando era recém-nascido era sua desaparecida - ou falecida - querida mãe.

Talvez nunca viesse a entender o porquê de tanto preconceito vindo do grão-mestre a seu respeito, mas pelo menos ainda haviam duas pessoas que não ligavam para – seja lá porque fosse – o fato dele ser um excluído socialmente.

Os cabelos loiros e picotados de Maryllum vieram a sua mente antes mesmo de seu rosto. Talvez seja pelo fato dele se sentir inebriado pelo cheiro de pão de canela que vinha das madeixas douradas da jovem cozinheira. Seu sorriso aberto que lhe lembrava um caleidoscópio de tão perfeito veio logo depois. Os olhos castanhos da cor do tronco de um salgueiro-coração, meio ocre, meio amendoado, não tardaram a aparecer.

Sua lembrança mais vaga dela foi de uma vez que ceiaram juntos. Ela o acolheu em seu charmoso chalé de pedra – como tudo o que era construído por aquelas terras – já pela noite, enquanto o jovem fugia de mais uma retaliação do supremo comandante.

Comeu a melhor comida de toda a Ilha ao som aveludado da voz de Mary. Lembra-se do sabor; Sopa de cogumelos de areia, carne assada recheada de legumes e até mesmo foi servido na melhor prataria que a garota tinha. Bebeu garlora* no mais fino pontarlier* que já havia visto.

Foi um tiro certeiro para o rapaz – que passou a enxergar as coisas em tons de cinza – quando ouviu por aí que a jovem garota que ele tanto amava iria desposar com Rich, comandante da guarda real. Após a tormenta, ele se isolou de todos. Menos de mestre Naboo, quem era a única pessoa intrépida e louca que lhe restava para conversar normalmente.

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