Capítulo 1 _ Adagas negras

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Mahara

Dadi, minha avó paterna, sempre foi uma mulher muito sábia mesmo nunca tendo frequentado a escola. Ela enfrentou todos os horrores imagináveis por ser uma dalit. Nossa família não possui uma casta, por isso a sociedade nos considera inferiores, somos comparados ao nada.

A sabedoria antiga diz que os brâmanes, casta mais alta formada por sacerdotes e letrados, nasceram da cabeça do deus Brahma. Os xátrias, casta conhecida pelos guerreiros e políticos, nasceram dos braços dele; os vaixás, a casta dos comerciantes, nasceram das suas pernas; os sudras, casta formada pelos camponeses, artesãos e operários nasceram dos seus pés. Já nós, dalits, não nascemos do deus Brahma, na verdade, viemos da poeira debaixo dos pés dele. Por isso somos considerados sem castas, intocáveis e impuros. Não somos bem-vindos nas casas de pessoas de castas e muito menos nos templos hinduístas. Os únicos trabalhos que nos restam são os considerados indignos pela sociedade, como limpar banheiros, recolher lixo ou lidar com os mortos.

Mesmo sendo algo enraizado na sociedade desde os primórdios, minha dadi se rebelou contra isso. Ela costumava dizer que a poeira formava o barro, e como as estátuas dos deuses eram feitas de barro, então éramos sim importantes. É claro que muitas pessoas se revoltaram com uma dalit que ousava debater contra os princípios preestabelecidos, e então numa noite quente de verão, homens embebidos pelo ódio atearam fogo na nossa casa. Estávamos apenas nós duas na ocasião, eu tinha cinco anos e ainda não falava na época, também não andava devido ao meu extremo baixo peso, pois vivíamos na mais completa miséria. Me lembro vividamente das labaredas ardentes engolindo tudo como uma enorme serpente faminta. Tudo o que tínhamos eram aquelas paredes, e elas foram consumidas pelas chamas que se alastraram em questão de minutos. Eu me arrastei até a porta com ajuda de dadi. Os olhos negros dela pareciam duas adagas cortantes que fizeram o meu coração sangrar. Ela tossiu ruidosamente com os pulmões clamando por ar. Sua voz soou extremamente lânguida quando ela alcançou o meu rosto com a mão trêmula.

— Seja a poeira que cegará os olhos dos que nos odeiam, Mahara! Não permaneça assentada ao solo, erga-se com o vento forte e voe alto!

Na época eu não entendi o significado de nada daquilo, apenas senti as lágrimas deslizarem pelo meu rosto enquanto meu nariz e garganta ardiam em brasa. O fogo crepitava ao nosso redor e a nuvem de fumaça escura nublava minha visão. De repente a mão dela despencou pesada próxima ao seu corpo inerte.

— Dadi! — Balbuciei a minha primeira palavra, mas ela infelizmente não pôde mais me ouvir.

🍃🍃🍃

O dia mal havia clareado e eu já estava curvada sobre a pequena e gasta vassoura, limpando as imundices das ruas. Volta e meia eu tinha que parar o que estava fazendo para as pessoas poderem passar, pois segundo os costumes, elas não podiam sequer encostar na minha sombra no chão que ficariam impuras. Exatamente por isso meu trabalho demorava muito para ser concluído. As pessoas me olhavam enojadas e me xingavam o tempo todo. Nesses momentos as últimas palavras de dadi ecoavam vivas em minha memória. Jamais me conformei por perdê-la por tamanha injustiça. E por pior que fosse, ela não foi a primeira e nem a última perda assim. Muitas casas de dalits foram incendiadas durante todos esses anos. Muitos homens foram assassinados e mulheres abusadas. Sobrevivemos à margem da vida, distante dos olhos da justiça.

Por mais errado que fosse, eu pensava exatamente como a minha dadi. Nunca consegui me conformar com a nossa situação. Baldi, meu pai, sempre foi contra meu comportamento, em parte por saber que não mudaria nada, e por receio que eu tivesse o mesmo fim da mamadi dele.

Todos os dias eu pedia para Lord Ganesha, o deus da sabedoria, iluminar minha mente e me ajudar a aceitar o meu destino. Entretanto, não importava o quanto eu pedisse, mais revoltada ficava. Eu sentia que não era justo ser excluída do mundo.

Quando eu era criança assistia às aulas na escola do lado de fora da sala, sentada no chão próximo à porta. Eu não tinha permissão para sentar com as outras crianças, muito menos lanchar com elas. Nem beber água limpa delas.

Cresci recolhendo lixos e me esgueirando pelas ruas com medo de ser atacada. Perdi as contas de quantas vezes meu baldi foi assaltado simplesmente por ser um dalit. Já não recebíamos quase nada pelo nosso trabalho, e ainda assim muitos faziam questão de tomar o pouco que tínhamos.

A Índia mudou muito com o passar dos anos, por isso muitas pessoas acreditavam que as coisas haviam melhorado para nós, dalits, entretanto, a realidade sempre foi extremamente diferente do que era pregado em discursos modernos e efusivos sobre equidade. Na prática, continuamos sendo menosprezados​.

Depois de terminar de limpar as ruas, segui para ajudar mamadi a lavar roupas. Ficamos quase o dia todo dentro da água do enorme tanque, batendo as roupas contra as muretas, depois esticamos tudo em cima dos telhados para secar. No final do dia meu corpo inteiro doía como se eu tivesse sido surrada. Mamadi e eu lavamos três enormes sacos de roupas para ganhar quarenta rupias, com esse dinheiro só deu para comprar um pouco de batata. Fomos para casa e preparamos um cozido bem temperado com curry e cardamomo.

De repente ouvi alguém batendo palmas na porta de casa. Saí desconfiada e me deparei com uma cliente bastante especial.

— Namastê, Mahara! — Professora Hilary me cumprimentou educadamente.

— Namastê! — Respondi envergonhada. — Eu já estava indo levar suas roupas, juro.

— Não tem problema. Imaginei que você estaria muito cansada, por isso resolvi buscar. — Contou com um sorriso luminoso. — Por que todos estão me olhando assim? — Questionou observando as pessoas na rua.

— Não é auspicioso visitar a casa de dalits, senhora. — Expliquei pacientemente. Ela franziu a testa e me olhou com indignação.

— Posso viver aqui mais mil anos que nunca vou me acostumar com tamanha bobagem.

Um sorriso escapou dos meus lábios e eu busquei o saco de roupas dela. Coloquei na calçada para que ela não pegasse das minhas mãos.

— Aqui está.

— Não precisa fazer isso, Mahara. Eu não acredito nessas coisas de impureza.

— Eu sei, a senhora já me explicou que de onde veio não tem nada disso.

— Sim, mas nos Estados Unidos acontecem outros tipos de preconceitos, infelizmente. — Suspirou pesarosa e então me olhou com atenção. — Tome seu dinheiro! E tome isso também. — Me estendeu cinquenta rupias e uma sacola.

— O que é isso?

— Tomei a liberdade de te comprar um presente. Sei que amanhã é o seu aniversário. — Contou me deixando boquiaberta. Abri rapidamente o embrulho e me deparei com um sári, nossa roupa tradicional que consiste em um tecido de 6 metros de comprimento, que usamos enrolado no corpo como uma espécie de vestido. Era lindo, negro com bordado prata e azul-claro nas bordas. O tecido era macio e belo como eu nunca tinha visto antes. — Tem bijuterias dentro do pacote também. Um look completo para você.

— Arebaguandi! — Exclamei surpresa. — Não precisava.

— Claro que precisa. Você é uma das minhas melhores alunas e sei que não irá comemorar seu aniversário, mas queria te dar algo para que possa usar e ver que é uma jovem de vinte anos como outra qualquer.

— Shukriya, professora! — Agradeci radiante e ela sorriu.

— Espero que esse presente lhe traga sorte. Use ele e verá que pode facilmente se misturar com as outras mulheres, porque nada te difere delas.

— Apenas a ausência de casta. — Murmurei triste.

— Com essa roupa ninguém pode desconfiar que você é uma dalit, querida.

Arregalei os olhos me dando conta de algo importante. Se ninguém me reconhecesse vestida elegantemente, então eu poderia ir para qualquer lugar. Sorri com essa conclusão. Eu já sabia para onde ir.

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