Audiências

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— Ajuda com o quê? — Minha mãe disse sem me olhar no rosto, distraída com alguma coisa no celular. — Pra quem disse que a gente nunca mais ia te ver, você tem aparecido bastante. 

— Tenho um amigo morando comigo, ele tem um filho...

— Hum, e daí? 

— Posso terminar?

— Já começou...

Relevei a arrogância que ela transpirava e transpassava o tempo inteiro e contei a história do Hugo, sem mencionar, é claro, como eu tinha conhecido ele. Minha mãe era advogada e, embora já não trabalhasse com casos como esse há algum tempo, ela era excelente nessa área. Atenta, ela compreendeu toda a história, mas parecia resistente. Tentei convencer ao máximo.

— Por favor. O Arthur é uma criança linda, ele merece crescer com alguém que realmente quer ele, que ama ele. O pai dele passou por muita coisa e não merece ficar sem o filho agora. 

— Olha, eu não trabalho mais com esse tipo de caso... Muito menos pró-bono.

— E quem disse que é de graça? 

— Pelo que você disse, ele não tem dinheiro direito. Como ele vai me pagar?

— Ele vai dar um jeito. 

— Ele ou você?

— Mãe, você pode pegar o caso ou não?

— Não, eu não posso. Agora preciso ir pro pilates. 

Saí de lá um tanto decepcionado, mas aquele não era o final. Existiam milhares de outros advogados, e eu só precisaria procurar algum de confiança e que fosse conhecido pelo seu bom trabalho. E torcer pra que não fosse tão caro. 

No outro dia, enquanto estava no trabalho, meu celular vibrou no bolso. Uma mensagem nova no whatsapp. 

Mãe: quero me encontrar com o Hugo. Me passa o número dele, vou marcar com ele em algum lugar.

Eu: Ok. Não acha melhor lá em casa? Fica mais fácil pra ele e você pode conhecer o Arthur.

Mãe: Tá bom. Me passa o endereço. 

Passei o endereço e agradeci por ela ter mudado de ideia, mas não tive mais qualquer resposta. Naquela noite, ela apareceu no meu apartamento. Julio e Hugo estavam na sala. Eu atendi a porta. 

Quando entrou, ela cumprimentou Julio de longe, que levantou e foi para o meu quarto. Fui até a cozinha, coloquei um suco de laranja na jarra e levei junto a dois copos até a sala, onde eles já começavam a conversar. Arthur estava dormindo, mas acordou alguns minutos depois. Hugo foi até o quarto e trouxe ele em seus braços. Minha mãe, com um extinto maternal e carinhoso, pegou Arthur no colo e brincou com ele enquanto Hugo lia os termos do contrato. 

— Ele é lindo. — Minha mãe disse. 

— É mesmo. — Hugo concordou como um pai orgulhoso. 

— E você cria ele sozinho desde então?

— Não, sozinho não. Desde que tô aqui o Rafa tem me ajudado bastante. Ele cuida muito da gente, não sei nem como agradecer.

Minha mãe pareceu um pouco séria. Engoliu em seco e não deu continuidade ao assunto. Quando estava indo embora, levei ela até a porta. 

— Obrigado. — Falei. 

— O que vocês dois têm?

— Como?

— Você e o Hugo. 

— A gente não tem nada. 

— É, sei. Vai pagar a conta por ele, provavelmente tá deixando ele morar aqui de graça. Se isso é nada, imagina se tivesse. 

— Mãe...

— Avisa pro seu irmão que ele esqueceu duas camisetas dele lá. Se ele quiser, eu peço pra um Uber trazer. Fiquem com Deus. Tchau. 

Ela seguiu em direção ao elevador e eu voltei pra dentro do apartamento. Hugo me agradeceu com um abraço apertado e esperançoso. Naquela noite pedimos uma pizza e comemos os três, assistindo um filme na sala. 


Quatro meses depois, muita coisa tinha acontecido. Julio ficou no Brasil apenas por mais três semanas e depois voltou pra Tóquio. Pra surpresa de todos, Bruna e Ramón noivaram no Reveillón de 2018 para 2019. Iury e Nico se aproximaram e, pasmem, começaram a ter um lance. Eu lidava bem com toda a questão e estava aproveitando o tempo pra desintoxicar de todos os problemas que tinha tido com relacionamentos. 

A primeira audiência em relação a guarda de Arthur tinha chegado. A questão principal que era levada em consideração era que Hugo não tinha qualquer condição financeira de criar Arthur, por não ter um trabalho e por morar de favor. Além disso, foi trazido em pauta pelos avós que Hugo tinha o hábito de beber e ficar agressivo quando morava com eles em Santos. Não sabemos como, mas a garota com quem Hugo ficou na noite em que soube da audiência foi usada para "provar" que Hugo tinha um um comportamento agressivo e que, naquela noite, foi tirada a força do apartamento por mim e por ele. Hugo negou, mas isso agravou a situação e fez com que os avós conseguissem a guarda provisória de Arthur. Um golpe baixo, sujo e mentiroso que a justiça assinava embaixo, o que era lamentável. 

Hugo estava destruído. Passava o dia no quarto, perambulava pelo apartamento às vezes e se alimentava mal. As idas da minha mãe ao meu apartamento se tornaram mais frequentes e nossa comunicação parecia um pouco mais flexível e amistosa. Embora ela tivesse me machucado bastante com tudo o que tinha dito, eu ficava feliz por aquela proximidade, mesmo que ainda muito distante do que éramos no passado. 

Por vezes, a galera e eu combinamos rolês no meu apartamento. Pedíamos comida, comprávamos muito doce, jogávamos colchões e almofadas no chão da sala e assistíamos filmes. Tudo isso como forma de tentar animar Hugo, que resistia em fazer qualquer rolê fora de casa. 

Mais uma audiência três meses depois. Mais golpes baixos. Aparentemente era alegado que não havia qualquer estrutura familiar pra criar Arthur no meu apartamento, que segundo o advogado dos avós, era um espaço onde recorrentemente entravam e saíam pessoas diferentes, de caráter duvidoso e que nada eram da criança. Minha mãe estava lutando com toda a força e o profissionalismo que tinha, mas a briga era pesada. Arthur continuava provisoriamente com os avós. 

A esperança se encurtava cada vez mais.



Amor de Areia (Romance LGBT)Onde histórias criam vida. Descubra agora