DOIS - Parte 1

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Encaro a poeira e as folhas no chão do segundo andar. Retiro o que pensei. Ia amar se o que quer que tenha acontecido para limpar o primeiro andar tivesse acontecido aqui também. Fantasmas, venham me ajudar.

Droga. Não adianta tentar me iludir. Se for limpar isso aqui sozinha, vou demorar uma semana, sendo otimista. Isso se a crise alérgica não me deixar de cama antes de terminar. O que quer dizer que preciso contratar alguém. E, se vou ter que pagar alguém para arrumar essa bagunça, é melhor eu descobrir logo de onde veio essa bagunça.

De noite, quando passei procurando algum lugar para dormir, não vi nenhuma janela quebrada. O que não quer dizer que não seja uma das janelas do quarto – já estava escuro e eu estava cansada. Não é nem um pouco improvável que eu tenha deixado alguma coisa passar. Mesmo assim, posso deixar isso para depois. Ainda tem mais um andar para eu conferir.

A escada para o terceiro andar fica no centro, bem na divisão entre as duas "alas" do segundo andar. Coloco uma mão no corrimão de madeira e balanço com força. Nada. Que ótimo, pelo menos uma coisa que não vou ter que pagar para consertar. Mas também, tenho a impressão de que tudo que é de madeira nessa casa é da melhor qualidade. Uma preocupação a menos.

O terceiro andar também é dividido, mas de forma diferente: metade dele é uma área aberta enorme, que obviamente também está coberta de poeira, folhas e até alguns gravetos. Acho que as coisas empilhadas perto da parede do outro lado são mesas e cadeiras, mas não tenho certeza por causa do pano bege que está cobrindo tudo. Rá. Bege. Aposto que um dia isso foi branco. Os panos protegendo os quatro sofás compridos também estão da mesma cor.

Quatro. Sofás. Como é que minha avó conseguiu ter dinheiro para isso tudo? Ou melhor, como isso era necessário nesse fim de mundo?

Mas, obviamente, isso era uma área de entretenimento. Provavelmente tinha uma TV – se é que tinha sinal de TV aqui, na época – e sabe-se lá o que mais. Uma estante? Acho que a mancha mais clara na parede é mais ou menos do mesmo tamanho que a estante que minha avó tem em casa.

A parede mais comprida da área tem quatro janelas. Alguém deveria ter pensado em tirar as cortinas antes de fechar a casa, porque aposto que elas já estão até podres. E, pela forma como uma delas está balançando, já achei minha janela quebrada.

Dou dois passos na direção dela e paro. Não. Posso conferir o resto do andar primeiro, agora que já sei onde o problema está.

A outra metade do terceiro andar não é muito diferente do andar de baixo, só não tem as suítes. São seis quartos no total, que dividem dois banheiros. E não quero nem pensar no trabalho que vai ser para tirar o cheiro de mofo dos colchões que ainda estão em condições de uso. Pelo menos não achei mais nenhuma janela quebrada.

Volto para a área de entretenimento e tampo o nariz com a blusa antes de ir até a janela. Se eu não tiver uma crise alérgica daquelas, vai ser um milagre.

Pedaços da cortina se soltam quando a empurro para o lado e paro. Droga. Não é só uma janela. É uma porta que dá para uma sacada, que dá para o quintal. E qualquer sinal de vidro já desapareceu há muito tempo. Que maravilha.

Solto a trava da porta – ela é velha o bastante para não ser ter uma tranca – e saio para a sacada. O parapeito é de cimento, então só está coberto de lodo onde a chuva caiu por anos. Menos mal. Se fosse de madeira...

Respiro fundo. Ar fresco, sem poeira. Uhul. E com aquela sensação fresca de um lugar cheio de árvores.

Espera.

Dou mais dois passos para a frente e coloco a mão no parapeito. Isso é o quintal? Porque eu só estou vendo mato. Ou melhor, mata. As únicas vezes em que vi algo assim foi quando fui no Parque das Mangabeiras com alguns amigos, quando ainda estava no colégio. Como assim, isso é o meu quintal? Não faz nem sentindo, considerando que não estou tão longe assim do centro da cidade... Se bem que essa cidade é minúscula.

Certo. Respiro fundo de novo e volto para dentro. Uma coisa de cada vez. Uma porta inteira, de vidro, que eu preciso substituir. E já que vou ter que mexer nela, vai ser melhor conferir as outras janelas, que aposto que também são portas. E talvez trocar por alguma coisa que não seja só de vidro?

Talvez. Mas primeiro só preciso dar um jeito de fechar isso. O que me lembra que eu vou ter que conferir o piso também. Tenho a impressão de que isso aqui é madeira, o que quer dizer que deve estar tudo estragado depois de anos de chuva entrando pela janela aberta. Não que eu vá tentar conferir alguma coisa com essa crosta de poeira.

Droga. Onde é que vou achar alguém para me ajudar nessa faxina e consertar tudo?

E eu quero ter certeza do que eu vi da sacada.

Desço de volta para o primeiro andar. É até estranho sair do momento casa abandonada coberta de poeira e descer para onde está tudo limpo... Inclusive o lustre. Não tinha notado isso antes. Okay. É estranho.

Entro na cozinha e vou direto para a porta dos fundos. Chave, chave... Acho a chave na primeira gaveta do armário ao lado da porta. Prático. E essa porta, pelo menos, é de madeira.

Saio em um pátio coberto, não muito largo. Do mesmo tamanho que a sacada, eu acho. Tenho a impressão de que o mato baixo logo depois do pátio foi uma horta ou coisa do tipo antes, mas logo depois disso já começa a mata. E realmente é uma mata: a vegetação é fechada o suficiente para até parecer mais escuro lá dentro.

Eu devia ter prestado mais atenção quando minha avó me falou sobre a casa e o terreno. Os documentos estão em algum lugar no meio das minhas coisas – provavelmente na minha mochila – mas tenho quase certeza que a propriedade inclui um quintal de bom tamanho. O que quer dizer que um pedaço dessa mata é meu.

Socorro. O que é que eu vou fazer com tudo isso?

***

N.A.: e lá vamos nós... hora de começar a juntar meu estoque de pipoca pra depois e já ir preparando meu cantinho pra me esconder hahaha

Sombra e Luar (Entre os Véus 1) - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora