O Homem-Café estava afastado de tudo aquilo, literalmente, num lugar que era quase o limite entre o Brasil e o fim do mundo, o vilarejo baiano de Cacha Pregos, na ponta da ilha de Itaparica. Ali as tensões das grande cidades e da política pareciam ecos distantes. O turismo havia decaído quase totalmente. As pessoas não se arriscavam mais a pegar estradas, tomar o ferry boat, ou coisas do tipo. Preferiam ficar em casa, ou nos shoppings, imersas em entretenimento de tela ou de realidade aumentada. Isso fez com que Cacha Pregos sofresse um novo êxodo e retomasse um pouco de sua antiga vocação, a pescaria no mar e extrativismo de mariscos e crustáceos do mangue.
Café estava morando numa casinha simples, de dois cômodos e telhado furado onde tinha tudo que precisava. Geladeira, cerveja, fogão, peixes, mariscos, caranguejos e uma TV. A depressão que o atingiu, anos antes, veio forte e provocou um fenômeno em sua pele extra-escura. A cobertura energética ficou irregular, espalhada em manchas, como se estivesse com vitiligo. Essa condição, teve um lado positivo, ele finalmente aprendeu a controlar permanentemente a energia mantendo-a fora de vista. Passou a mantê-la abaixo das canelas, de modo que parecia estar sempre usando um par de meias bem pretas.
Café estava envelhecido. Os cabelos brancos agora mostravam-se abundantes em sua cabeça. A pança, proeminente, havia crescido mais ainda. Tinha um olhar triste, cabisbaixo e passava boa parte do tempo um pouco alcoolizado. Ia até a Praça do Pau Mole, toda tarde, jogar dominó com os pescadores aposentados. A Praça do Pau Mole era na verdade um pequeno quiosque de alvenaria na beira do mangue com algumas mesas e bancos de cimento, tudo decorado com mosaicos de ladrilho de construções demolidas. E algumas horas do dia, ficava sob a sombra suave de um imenso e frondoso pé de tamarindo.
Ninguém o reconhecia ali como herói, e isso era um grande alívio. Se sentia igualmente aposentado. Até mesmo o seu antigo parceiro, Henrique Schmidt, que anos antes não largava de seu pé, na forma de uma aparição fantasmagórica, havia sumido depois que passou meses tomando remédios para a depressão.
— Cês virum isso? — indagou Xexéu, um dos amigos de Café, negro, magro e maneta. Tinha perdido uma das mãos pescando com bombas, há mais de vinte anos.
— Isso o que, Xexéu?
O pescador coçou a barba branca e rala e depois colocou o celular sobre a mesa. Era um vídeo mostrando aviões de guerra americanos pousando na base de Alcântara. Letreiros na parte inferior diziam. EM DEFESA DA AMAZÔNIA.
— Os gringo 'gora tão apoiano os Blobsons. Já num basthava essa guerri'a nas cidade... Agora os china tá tudo mandanu avião, naviu e o ishcambau prá Venezuela. Vai tê guerra de catchorru grandi nu nossu quintau, hem, Sesé?
Café bateu sua peça de dominó sobre a mesa — Deixa isso prá lá, que tô fechando o jogo aqui com las quinè.
Logo, mudaram de assunto, falando sobre futebol e novelas aproveitando a gostosa brisa que vinha do mangue com a maré vazia. O chão lodoso e ressecado parecia um manto vivo, repleto de milhares de minúsculos caranguejos exibindo suas pinças em forma de tesoura, lutando para demarcar seus territórios.
Café não estava nem aí para o que acontecia no continente. Se despediu dos colegas e caminhou para seu banho de mar, tradicional do fim de tarde, quando costumava apreciar o pôr do sol. Cacha Pregos era uma vila pequena, e havia apenas três ruas principais, a rua da praia, do meio e do porto. A da praia, mais longa, levava até uma ponta onde a água do mar e do mangue se encontravam. Era o seu lugar favorito para nadar. Ainda se lembrava do moleque magrelo que ficava seguindo ele, em seus primeiros dias ali na vila. Hoje, um rapaz. Ele era um dos poucos que desconfiava que o seu Severino era na verdade o Homem-Café.
— Sô Severino, por que seus pés são pretos assim, hem?
— Foi um acidente na construção. Grudou piche no meu pé e não quis mais sair.
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Homem-Café: Nação em Chamas
Ciencia FicciónO que aconteceria se o Homem-Café desistisse de ser herói e se aponsentasse?