-O que está fazendo aqui? Procurei você por toda parte. - a voz calma e fraca de Anila funcionou como um relaxante muscular para o meu corpo travado. Ela tirou sua mão minúscula e extremamente gelada do meu ombro e caminhou até um ponto na grama onde havia sol. Anila amava o sol mas sua pele era fria como gelo. Ela dizia que era alguma coisa relacionada a falta de sangue no corpo, antes de ir parar no hospital Santa Lúcia para pessoas mentalmente debilitadas ela morava em um quarto com o pai e os três irmãos, e eles não tinham dinheiro para dar de comer a todo mundo. Anila dizia que comer pouco, porque seu sonho sempre foi ser bailarina e ninguém iria contratar uma bailarina gorda, fazia com que a quantidade de sangue no corpo diminuísse, logo ela era extremamente fria.
Anila era ainda menor que o garoto do quarto azul mas eu não sabia sua idade, nem a quanto tempo estava aqui. Ela dizia que a idade de uma mulher e quanto tempo ela está internada são perguntas que não se fazem, eu apenas aceitei sua decisão. Minha mãe não falava a idade dela pra ninguém, então o que ela disse fazia um pouco de sentido. Ela tinha o cabelo tão curto que eu mal conseguia segurar um fio com as mãos, e sua pele, que deveria ser morena, era um tom de cinza escuro. Anila tinha a aparência de pessoa que ficou doente por tanto tempo que nunca mais se tornou o que era antes. Às vezes imagino o quão bela ela deveria ser, se a cor dela não tivesse sido comprometida provavelmente ela teria um tom de chocolate cremoso, seus lábios ainda eram cheios e seus olhos deveriam ter sido de um azul muito bonito, mas hoje são quase brancos.
-Olivia, o que aconteceu?
Ela estava sentada na grama, com o sol batendo em parte do rosto, e eu ainda estava no mesmo lugar, apesar de já ter relaxado os músculos levemente ainda estava parada no mesmo lugar.
-Hoje é quarta - eu tinha absoluta certeza de que minha voz era bem clara, mas a interrogação estampada na cara dela me fez duvidar por um breve instante. - Seus tratamentos ..
Uma lâmpada se acendeu em sua cabeça e aparentemente tudo começou a fazer sentido. Anila fazia tratamentos constantes, pelo menos duas vezes por semana. A maioria eram apenas transfusões de sangue, o que prometia melhorar o aspecto da pele e dos olhos dela, e os eram conversas, como as que eu tinha com o Dr. Pats. Ela deu de ombros, ela sempre fazia isso para qualquer assunto que fosse relacionado a suas consultas. Anila era tão reservada que as vezes eu duvidava que esse era seu nome de verdade, não seria tão difícil, ela teria apenas que pedir para que as Flores a chamassem assim e tudo estaria resolvido.
Depois que cheguei, quando os remédios começaram a me deixar menos zonza, eu acordei em uma noite morrendo de frio e suando como se estivesse em um forno. Me sentei na cama e olhei para a janela aberta, que eu não me lembrava de ter deixado aberta, e fiquei pensando se seria melhor fechar e terminar de ser marinada ou se seria melhor continuar com frio. Eu nunca cheguei até a janela.
Sentada em uma cadeira perto da porta estava ela, provavelmente a pessoa mais magra e mais miúda que eu já havia visto, com a pele mais fantasmagórica que eu já havia visto e com os olhos mais assustadoramente claros que eu já havia visto. Eu gelei, a sensação de forno do quarto havia sumido, eu não estava com frio, eu estava paralisada olhando fixamente para aquele ser sentado perto da porta trancada do meu quarto me perguntando se estava imaginando, sonhando, ou se ela era efeito dos remédios, não seria a primeira vez.
No começo eu sonhava com a Alisson, sonhava com ela entrando no quarto em uma cadeira de rodas e me dizendo que tudo ia ficar bem, como ela sempre dizia. Ela me abraçava e chorava comigo, quando eu perguntava sobre a sua cadeira ela dizia que era temporário e que logo ela voltaria a voar por aí. Aquela não era Alisson, eu não tinha certeza nem se era uma garota.
Ela não se mexia, apenas me olhava fixamente com a cabeça levemente inclinada para baixo, sua cabeça estava raspada e usava apenas uma camisola enorme, que poderia facilmente ter sido de alguma tia obesa. Eu não respirava. A tensão entre nossos olhares era tão forte que eu não sentia meus músculos, e acreditava que eles não eram capazes de se mexer.
E então a pessoa levantou, dando passos muito lentos, com o corpo excessivamente magro se movimentando com muito cuidado. Quanto mais próxima ela estava da minha cama mais travada eu ficava. Queria correr dali, mas ela estava entre eu e a porta trancada e as minhas chances eram mínimas. Eu tinha assistido filmes de terror suficientes para saber o que eu não poderia fazer. E tinha a janela aberta, se eu tivesse me levantado para fechá-la eu já estaria mais próxima e talvez pudesse considerá-la uma rota de fuga menos perigosa, embora eu não estivesse nem no térreo e nem no primeiro andar.
Ela chegou mais perto, tocou a beirada da cama e eu desejei estar morta. E então, como se fosse a coisa mais natural do mundo ela ergueu uma lanterna e acendeu na minha direção, jogando um feixe de luz extremamente forte na minha cara. Eu ergui a mão por impulso, para me proteger da cegueira certa, e senti meu braço doer graças a todo aquele excesso de tensão que o estava prendendo.
-Você é nova aqui não é? - a voz que vinha de trás da lanterna era extremamente baixa e calma, como um sussurro, ou como se a pessoa simplesmente não tivesse força alguma para falar mais alto. Era a voz que eu imaginava que os fantasmas usariam para atrair as pessoas, mas ela não era um fantasma.
-S-sim. - eu gaguejei. Sempre fui tímida, nunca gostei de muito contato, mas eu nunca gaguejei na vida. Não sabia ao certo se era pelo medo, se era a minha mandíbula completamente travada, ou se eu apenas estava enlouquecendo, mas ver minha própria voz gaguejando me deixou tão horrorizada que eu quase esqueci que estava jurada para a morte naquela cama.
A lanterna se apagou, e eu esfreguei meus olhos tentando me adequar novamente ao escuro. Quando abri os olhos ela ainda estava ali, mais perto agora, e bem menos assustadora que antes. Ela ainda era fantasmagórica, extremamente magra, mas não tão assustadora.
-Você parece machucada, sofreu um acidente né? - as perguntas fluíram dela com tanta naturalidade que, pela primeira vez desde o dia 14 de agosto, eu não me senti incomodada com perguntas sobre o acidente. Ela se sentou na beirada da minha cama, e eu contei a ela sobre como perdi Alisson, e chorei enquanto falava. Ela me disse que chorar era relativo, que algumas pessoas choram tanto quando chegam aqui que depois não conseguem mais chorar, que outras nunca choram e que algumas raras nunca deixam de chorar.
Quando meus olhos começaram a ficar pesados novamente graças ao sono ela percebeu, se levantou e disse que eu precisava descansar, que no dia seguinte ela me levaria para um passeio no pátio, e então saiu pela janela aberta e a fechou atrás de si.
No dia seguinte eu descobri que seu nome era Anila mas não descobri a quanto tempo estava aqui. Descobri que ela conseguia entrar em qualquer quarto do meu andar, porque ela tinha ficado aqui por um tempo e sabia como as travas das janelas funcionavam, e descobri que o parapeito das janelas era largo o suficiente,e próximos o suficiente, para que uma pessoa pudesse facilmente andar entre eles.
Anila apareceu junto com a Flor que trazia os remédios da manhã. Ela ainda usava a camisola grande da noite anterior mas queria que eu vestisse a minha melhor roupa, disse que me levaria no lugar mais bonito de todo o Hospital Santa Lúcia, e eu fiquei imaginando o que um lugar como aquele poderia ter de bonito.
O sol batia em apenas uma parte do seu rosto enquanto ela estava sentada na grama, e eu podia ver levemente como seria sua cor se ela não fosse tão esbranquiçada. Ela fechou os olhos e eu me sentei ao seu lado, tentando aproveitar cada momento como aquele, tentando me prender a lembranças como a do dia em que eu a conheci para afastar a minha mente do real problema.
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Querida Alisson
Misterio / SuspensoInternada em um hospital psiquiátrico após a morte da irmã, Olivia e outros pacientes decidem investigar sua morte para descobrir se realmente foi um acidente ou se foi um assassinato. Será que a morte de Alisson realmente foi acidental ? "Escreva O...