A última escrita do caderno vermelho

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Mais uma vez esperei que as luzes se apagassem para poder sair. Andar pelo lado de fora do prédio não foi tão difícil quanto da primeira vez, dessa vez eu já sabia exatamente como fazer, e o mais importantes, eu sabia até onde poderia ir pelo lado de fora. Abri a janela do corredor como Anila havia me ensinado e pulei para dentro rapidamente. Comecei a imaginar uma Anila com 11 anos pendurada para fora da janela durante a noite, e então lembrei de tudo que tinha acabado de ler e engoli em seco. Eu poderia não ter saído da cama, poderia simplesmente deixar aqueles documentos embaixo do meu travesseiro até decidir que era hora de devolvê-los. Mas a cada segundo que passava eu corria o risco de ser pega, e provavelmente eu seria mandada para uma penitenciária qualquer, eu não poderia arriscar.
Foi muito mais rápido do que da primeira vez, cheguei a sala da diretora em poucos minutos, pelo menos essa noite eu poderia dormir por mais tempo.
A chave da porta da diretora estava embaixo do tapete como da primeira vez e a chave do arquivo no fundo da primeira gaveta da esquerda. Não tive problemas para colocar as pastas em seus devidos lugares então apenas me preocupei em voltar o mais rápido possível, parando apenas para olhar para um retrato de uma Anila pequena com uma roupa de balé. Corri em direção ao meu quarto sem a menor vontade de prolongar aquele caso.
- E então, o que achou do que leu? - disse Anila sentada no posto das enfermeiras perto da escada. Eu acabei pulando com o susto e quase vim escada abaixo. Não deveria ter me assustado, ela provavelmente seria a única pessoa que eu e contraria perambulando pelos corredores a essa hora da noite.
- É assustador. - disse andando em sua direção, por mais que eu adorasse Anila, ler todo o seu histórico médico me deixou um pouco receosa com relação a ela. Mas ela não sabia que eu tinha lido seu histórico, então eu apenas tinha de fingir que estava tudo bem.
- Concordo com você, é uma das piores histórias daqui.
- Você já leu? - perguntei espantada, mas menos de um segundo depois pensei melhor, era óbvio que ela já tinha lido cada um dos arquivos lá em cima depois de tantos anos aqui e sabendo os segredos de todas as chaves.
- Mas é claro, eu li todos os arquivos. A velha gosta de guardar muitas informações sobre os casos. Muitas vezes informações que não são necessárias, como o diário do Kobin por exemplo.
- Você conheceu ele?
- Sim, mas achei que você fosse deduzir isso sozinha pela data da minha internação.
- Na verdade eu nem relacionei uma coisa a outra .. - droga!
Anila tinha um sorriso travesso nos lábios, que me fez lembrar do seu riso e causou um calafrio na minha espinha. Ela sabia, sabia que eu tinha pego sua pasta além da do garoto do quarto azul. E agora eu sabia de todos os seus segredos.
- Sinto muito, eu não resisti.
- imaginei que não fosse - ela saiu de trás do posto das Flores e caminhou ate a janela que usaríamos para sair do prédio. - mas eu também li o seu então .. - ela deu de ombros antes de olhar pra mim.
- A sua também é uma das mais assustadoras? - perguntei parando ao seu lado próxima a janela.
- A minha é a mais assustadora. - ela manteve o sorriso calmo no rosto e eu pensei o quão aquele sorriso era diferente do sorriso que ela esbanjava na foto da sala da Sra. Bazov. - todos tem segredos Olivia.
- Eu tenho a sensação de que não conheço mais ninguém. - disse olhando para além da janela, além do pátio do hospital Santa Lúcia para pessoas mentalmente debilitadas, olhei para o horizonte vazio.
O quanto eu não conhecia? O quanto eu tinha me privado de conhecer? Eu não conhecia as pessoas, e as que eu conhecia tinham segredos obscuros e eu não sabia mais em quem poderia confiar. Alisson não estava mais aqui para me proteger, nem para me aconselhar, eu teria de aprender a me virar sozinha.
- Ninguém conhece ninguém de verdade. - disse Anila e em seguida caminhou em direção a escada que dava para o seu andar. - Tente dormir essa noite.
- tudo bem. - respondi mais para mim mesma do que para ela, que já tinha desaparecido degraus abaixo.
Voltei para o meu quarto e apenas me joguei na cama sendo consumida pelo cansaço, mergulhando em um sono completamente sem sonhos.

- Hora de acordar Olivia. - uma voz fininha entrou na minha mente, cortando o vazio do meu sono e me puxando de volta para a realidade.
Encontrei uma Flor sorridente parado ao lado da minha cama com uma bandeja de café da manhã. Eu apenas abri meus olhos sem dizer nenhuma palavra, eu não gostava de falar logo que despertava, e as Flores sabiam disso.
- Tome seu café e se apronte, o Dr. Pats está te esperando.
Acenei com a cabeça e me concentrei no meu café da manhã. Eu sabia o que falaria para ele, sabia exatamente o que queria, e dessa vez não levaria o caderno vermelho. O natal está próximo, eu sei disso, o tempo está cada dia mais quente e do lado de fora da minha janela a chuva torrencial faz mais barulho do que qualquer outra coisa.
A porta do DR. Pats estava aberta quando cheguei, ainda sim dei duas batidas nela e entrei. Ele ergueu os olhos dos papéis apenas para se certificar que realmente era quem ele esperava que batia na porta. Em todo esse tempo aqui, que pode não ser tanto tempo quanto é para Anila ou o garoto do quarto azul mas é muito tempo pra mim, eu nunca tinha vindo a sala do Dr. Pats sem um de meus cadernos. Eu sempre vim aqui para que ele me mandasse escrever sobre o acidente da Alisson, por isso eu precisava deles, mas agora não, e ele percebeu a ausência.
- Bom dia Olivia.
- Bom dia Dr. - ele gesticulou para que eu me sentasse na cadeira vazia a sua frente e eu o fiz.
- Queria conversar comigo? A enfermeira disse que tem tido pesadelos. - ele disse voltando sua atenção total para mim.
- Sim, tem os pesadelos também.
- Acho que é a primeira vez que te vejo em minha sala sem o seu caderno. Esta tudo bem?
Eu olhei para a parede de fotos novamente, cada um dos rostos sorridentes e agradecidos por finalmente sair daquele lugar. Eu imaginei se ele iria querer tirar uma foto minha para a parede, e em como eu não estaria sorrindo na foto provavelmente.
- Eu quero ir pra casa - disse sem rodeios, e ele pareceu um pouco confuso com o meu pedido, ou preocupado, não sabia dizer ao certo.
- Olivia, eu vou perguntar e espero que seja sincera comigo, tudo bem? - ele parecia mais sério do que nunca e eu apenas acenei com a cabeça em afirmativa. - acha que está pronta para ir para casa?
Eu pensei em tudo que tinha acontecido nos últimos meses, pensei no acidente e na morte da Alisson, pensei em tudo que aconteceu com o garoto do quarto azul e com Anila, pensei em tudo que eu e Alisson tínhamos planejado para nossas vidas e eu não queria falhar com ela, não queria viver o resto da minha vida em um hospital com medo do que tem do lado de fora.
- sim!
Eu não tinha a menor dúvida de que o meu lugar era em casa, e ele tinha de me liberar, apesar de eu saber que não é assim tão fácil. Eu preciso que ele assine minha alta, mas a diretora Bazov também tem que assinar e meus pais precisam estar de acordo. Já faz tanto tempo que eu não fico em casa que nem sei se ainda sabemos viver juntos. Eu apenas espero que não deixe de ver a Alisson em meus sonhos, apenas isso.
Ele respirou fundo, tirou o óculos e coçou as têmporas e eu não sabia o que isso queria dizer.
- Você tem escrito, Olivia?
- Apenas em meu caderno azul.
- Eu quero que escreva mais uma vez em seu caderno vermelho, tudo bem?
Acenei com a cabeça e comecei a me levantar, quanto antes eu fizesse isso antes ele ligaria para os meus pais para que eles me levassem para casa. Com sorte eu sairia daqui ainda hoje.
- Me traga quando terminar, por favor.
Ele já tinha voltado sua atenção aos papéis em sua mesa e eu deixei sua sala com pressa para voltar ao meu quarto.
Fiz um pequeno desvio pelo andar de Anila, depois da conversa que tivemos ontem a noite eu não sabia se estava tudo bem entre nós e, por mais que eu tivesse ficado um pouco impressionada com sua ficha, ela era o mais próximo que eu tive de uma amiga em anos, e principalmente, ela era a única chance que eu tinha de fazer amizade depois da morte da Alisson. Anila não era mais a garota descrita naqueles arquivos, ou eu esperava que não fosse.
A porta do seu quarto estava aberta e ele estava vazio. Ela poderia estar em qualquer lugar do prédio e eu praguejei baixinho para que as enfermeiras não ouvissem. Anila iria me perdoar, mas hoje eu não tenho tempo pra brincar do seu joguinho de "onde está a garota careca?". Hoje eu tenho que ir para casa.
Uma vez no meu quarto eu fechei a porta e me joguei na cama com meu caderno vermelho, com sorte aquela seria a última vez que eu escreveria nele. Abri em uma folha vazia e deixei que todas minhas memórias sobre aquele dia horrível voltassem, deixei que minha mente viajasse e que Alisson aparecesse na porta do meu quarto com seus longos cabelos balançando atrás dela. Eu senti meus olhos começaram a arder, eu sabia que choraria, era inevitável.

"14 de agosto de 2015

Eu vi a cabeça animada de Alisson aparecer na porta do meu quarto e sabia que ela queria aprontar alguma coisa, se já não estivesse aprontando.
- Levante dessa cama ratinha.
Ela gostava de sorvete, mais do que de qualquer outra coisa, e sempre que ela ia na sorveteria ela me levava. Ela dizia que eu precisava conhecer todas as coisas boas da vida e que ela iria me apresentar a todas que pudesse.
Ela pegou a chave do carro da mamãe em cima do móvel na entrada e nós saímos. O caminho até a sorveteria não levava mais do que dez minutos, e logo nós estávamos no carro mais uma vez com duas casquinhas de chocolate, pra mim, e de pistache, para Alisson. Nós estávamos com o som ligado cantando uma daquelas músicas que toca na rádio o tempo todo, e mesmo que você não goste sabe a letra dela de cor. E então tudo aconteceu muito rápido.
Um carro desgovernado atingiu o nosso de frente. Fomos arrastadas por parte da rua. Os airbags inflaram, o meu sorvete foi parar em algum lugar no banco de trás e tudo ficou escuro. Quando acordei ouvi o barulho da polícia e das ambulâncias e podia sentir um cheiro de combustível muito forte. Eu não conseguia enxergar direito, apenas vultos se mexendo muito rápido na minha frente, mas senti quando alguém me puxou para fora da proteção dos airbags e de como doeu. Era como se todas as partes do meu corpo estivessem soltas e quem me puxou estivesse me desmembrando.
Uma mulher gritava desesperadamente em algum lugar no meio da confusão. Aos poucos minha visão foi tomando foco e eu pude ver a pequena multidão que tinha se acumulado ao redor do acidente. Seja lá quem tenha me tirado do carro me colocou em uma maca e três pessoas vestidas de branco correram comigo para dentro do uma ambulância.
- Alisson .. - tentei dizer e por um momento pensei que não tinha saído nada da minha boca, mas então uma das mulheres que corria com a minha maca olhou para mim e respondeu.
- Eu sinto muito querida.
Eu não tive tempo para perguntar o que ela queria dizer com isso, chegamos a ambulância e eles ergueram a minha maca para subir no veículo, e então eu pude ver. No meio da confusão, ao lado do nosso carro estavam dois sacos pretos no chão, e o que ela me disse fez sentido.
A mulher continuava gritando em algum lugar, mas aos poucos seus gritos foram perdendo a intensidade conforme eu ia perdendo a consciência. No hospital encontrei meus pais ao lado da minha cama, com aquela cara de quem não sabe como dar uma notícia ruim. Mas eu já sabia o que eles queriam me dizer. Alisson estava morta e eu comecei a chorar. "

Lágrimas caíram nas páginas do que deveria ser a última escrita no caderno vermelho com o logo do hospital Santa Lúcia para pessoas mentalmente debilitadas, mas algo em mim não estava feliz com isso, provavelmente resquícios das lembranças do acidente. Eu queria ir embora, queria ir para minha casa, mesmo sem saber como reagiria a ausência dela. Uma coisa é estar em um lugar como esse, onde Alisson nunca esteve, outra e estar na nossa casa, no quarto que deveria ser dela, na sala onde costumávamos ver as séries que ela mais gostava, na cozinha onde comiamos escondidas de madrugada. Alisson nunca esteve aqui, e eu agradecia imensamente aos meus pais por terem tido a ideia de me trazer a um lugar onde eu pudesse processar a informação de que ela não estaria mais aqui, nunca mais, e por mais que eu estivesse agradecida estava na hora de voltar para casa e de enfrentar sua ausência.
Fechei o caderno vermelho e deixei meu quarto novamente para entregá-lo, pela última vez, para o Dr. Pats.

NOTINHA DA JAAQ

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NOTINHA DA JAAQ

Oii gente tudo bem?
Espero de verdade que estejam gostando de Querida Alisson pq eu simplesmente estou amando escrever.
Queria saber o que vocês estão achando, o que acham que pode melhorar, quais as críticas e tals, como é minha primeira história publicada assim o feedback de vcs é importante.
Me digam o que acham, me chamem se quiserem, eu amo conversar 😍

2bjs

Querida AlissonOnde histórias criam vida. Descubra agora