Desconhecidos leitores, vocês já tiveram problemas com seus sonhos?
Pergunto porque estou sofrendo já há tempo e constantemente me pego questionando se talvez não tenha ficado louco. Não sei como lidar com essa dúvida e estou realmente um pouco apavorado.
Eu lembro exatamente como começou porque a primeira vez foi na noite de ano-novo. Estava entupido de churrasco, bêbado e feliz quando me despedi de meu pai (que chorava de alegria em um êxtase etílico) e fui dormir, lá pelas três da manhã. Sonhei que estava em uma sala úmida e embolorada, com as paredes manchadas de infiltração e uma lâmpada de fiação exposta gingando no teto, de um lado para o outro. No canto da sala uma garota nua estava sentada sozinha e cantarolava. Ela era magra, pálida e careca, tinha cicatrizes nos braços e na barriga e os olhos amarelados, esquisitos, como quem tem icterícia. Ela não falava nada: só entoava vogais finas e quebradiças.
Eu tinha medo de me aproximar e ficava apoiado contra o canto oposto, observando e suando frio. Daí acordei, perturbado e assustado. Cheguei a comentar com um amigo que tinha tido um pesadelo esquisito, mas por hora fora apenas isso. Os dias passaram e esqueci o assunto, principalmente porque tive outros assuntos mais sérios para me focar: logo na manhã do primeiro dia do novo ano, descobri que meu pai tivera um derrame e estava em coma; em menos de uma semana, a piora rápida da condição o levou à morte.
Exatamente uma semana depois da primeira vez, quando deitei exausto para tentar descansar depois do velório de meu pai, tive outro sonho semelhante àquele primeiro. Ao contrário da outra ocasião, desta vez era um sonho lúcido. Eu tinha plena consciência de que estava dormindo e de que, se esperasse e não me movimentasse, acabaria acordando. Fiquei pelo que pareceu uma eternidade vendo a garota nua, calva e doente cantando. Até que finalmente acordei, tremendo.
A frequência foi aumentando. Quatro dias depois, tive o mesmo sonho outra vez. Depois, apenas dois dias para que se repetisse. Finalmente, cheguei a sonhar com a menina diariamente, toda noite revisitando sua salinha. Comecei a ficar estressado e cansado por culpa disso mesmo quando acordado, tive surtos de insônia e dificuldades para dormir. Passei a deitar com luzes acesas e ouvindo música, pois somente desse jeito conseguia adormecer (mesmo assim, só depois de muito me revirar). E agarota continuava aparecendo, recorrente.
A repetição era tanta que, mesmo acordado, a música que ela cantava ficava todo o tempo passando no fundo da minha cabeça. Algumas vezes, eu me surpreendia cantarolando também aquela melodia calminha e boba durante o dia, nos momentos de desatenção.
Podia não ter feito nada e talvez os sonhos seguissem iguais até hoje. Mas o convívio, a rotina e a repetição me enganaram com falsas sensações de curiosidade e segurança que, sobrepostas ao tédio e à ilusão de que tudo aquilo só podia ser inofensivo, fizeram com que eu agisse de jeito inconsequente e assim alterasse o rumo de tudo.