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"Lua", eu repetia incessante, até chato, com a garota encolhida contra meus braços, ainda ambos na sala fria, com suas goteiras, sua iluminação precária, seu frio e ausência de portas ou janelas.

Os dois lá, sozinhos, por outra noite entre tantas, em outro sonho perdido.

"Consegue dizer, Lua?"

Escolhera o nome por um misto de razões. Por ser uma palavra pequena que eu julgara ser fácil para que a criança aprendesse, mas também por uma razão poética, de vê-la no sonhar, quase sempre durante as noites. Achava belo e engraçado, irônico, e acreditava que, uma vez que pudesse tentar explicar-lhe o que era uma lua de fato, a menina também gostaria de assim ser nomeada.

Naquele primeiro momento, tive mais dificuldades do que esperava. A menina somente soltava as vogais, "ua",sem conseguir nem ao menos juntá-las na palavra. Depois de algum tempo de esforço, travou para conseguir gaguejar "", aparentemente vendo complexidade demais em reunir numa só vez duas vogais e uma consoante.

"Lua, Lua, Lua, Lua, Lua", consegui fazer a criança dizer finalmente numa noite, depois de muito esforço. Ela sorriu banguela para mim e eu acariciei sua calva cabeça para parabenizá-la; então ela me abraçou forte, contentíssima por seu feito. Passou então a cantarolar sua única música, a mesma de sempre, agora adicionando seu novo nome na repetição dos tempos.

Ri do uso que ela deu à sua primeira palavra. "Lua, lua, lua, lua", ela repetia cantando, dando seu jeito de encaixar o ritmo na palavra única. Considerei o bastante por aquela noite e sentei com ela, olhando o teto sujo e escutando-a, refletindo, ainda sem ciência nenhuma do monstro que estava, dia a dia, criando e ensinando, civilizando, construindo.

Lua, afinal, era adorável apesar do seu aspecto sinistro e das circunstâncias estranhas em que a conhecera e visitava. Começava a me apegar à menina, tal fosse filha minha, e cada vez mais me agradava vê-la todas as noites. Numa tentativa estúpida de explicar o fenômeno de nossos encontros noturnos, inventei uma teoria de que Lua era uma manifestação do meu inconsciente, da minha vontade paternal, uma formulação do meu desejo por filhos ou talvez uma reação ao luto por meu pai. Considerava-a agora minha amiga imaginária, minha constante e indefesa companhia, e entreguei-me de alma para ela, vendo nos avanços que fazia para conseguir domesticá-la uma fonte frequente de alegria e orgulho.

Alguns meses foram o suficiente para que já tivesse lhe ensinado a falar decentemente algumas dúzias de palavras. Agora, trocávamos horas de diálogo, com Lua perguntando-me sempre curiosa sobre o mundo lá fora, tentando conceber coisas que nunca vira em sua sala, desejando por conhecer o mundo externo ao sonhar.

"Leva Lua lá um dia?" ela perguntou a mim numa noite. Por alguns minutos me calara para ouvir sua cantoria e pisquei surpreso com o pedido. O diálogo anterior fora sobre a praia, onde eu lhe dissera que sua "irmã mais velha", a lua real, refletia no mar durante as noites sem nuvens.

Suspirei fundo e acenei positivamente com a cabeça. Mesmo sendo um sonho, mesmo estando em minha cabeça, eu era impotente em retirar minha criança daquela sala. Queria poder carregar fotos, ou levá-la para minhas próprias memórias de praias e noites, mas existia um bloqueio que me impedia. Não queria decepcioná-la, entretanto, e por isso garanti que em breve a levaria para um passeio, uma excursão a uma orla qualquer.

Lua sorriu e cantou o resto da noite, enquanto uma preocupação culposa crescia lentamente em mim, tomando-me.

LuaWhere stories live. Discover now