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Gostaria de fantasiar e dizer que, nos delírios de meu mundo imaginário, fui capaz de dar para Lua toda sorte de incríveis experiências, de mágicos lugares e maravilhosas memórias, que com ela explorei mundos maravilhosos e voei por céus abertos.

Mas mentiria se assim o fizesse. As noites passavam e aumentava a ansiedade de minha pequena criança, presa em sua sala decrépita e úmida, sem qualquer meio de fuga. Lua era prisioneira do lugar e, penso eu, possivelmente de minha mente. Nos dias, era quase capaz de sentir sua presença, esperando por mim e cantarolando sozinha enquanto olhava as paredes rachadas; aguardando, junto ao sono da noite, que eu retornasse para contá-la das maravilhas exteriores.

A sua aparência sinistra começava a se modificar também. A cabeça outrora calva crescera espetacularmente rápido um curto cabelo negro e revolto. Seus olhos, mesmo que ainda amarelados, pareciam se encher cada vez mais de vida. Sua nudez, tão frágil, agora se escondia com um fino manto branco de algodão que surgira espetacularmente em dada noite, jogado molhado na sala.

E como, surpreendentemente, começava a se provar inteligente a pequena Lua. Curiosa, sedenta por aprender e espirituosa, a minha aprendiz que pouco antes sofria da completa ignorância agora já aprendia a escrever. Ausentes de outros métodos de registro, rasgávamos meus braços em pequenos cortes para, do meu sangue de sonhador, tingir as paredes ladrilhadas com o abecedário, as sílabas, as palavras e, enfim, as frases.

"Sou Lua e gosto muito de aprender", ela escreveu em certa noite, independente, sozinha, piscando para recordar-se dos signos. Ao conseguir, bateu palminhas e sorriu, animadíssima, e apressei-me em abraçá-la, sorrindo. Foi aquela nossa última boa noite, o último bom sonho que compartilhamos.

No dia que se seguiu, senti certo incômodo, uma dor latente e uma irritação na pele de meus braços. Quando olhava, era incapaz de encontrar a origem do problema, notando apenas uma certa vermelhidão, que julgava ser causada por alguma alergia.

Na noite, ao adormecer, encontrei Lua caída, sem forças para sua habitual cantoria. Por toda a extensão das quatro paredes e do chão, ela escrevera um bizarro manifesto desejoso e utópico sobre o que viria a ser a realidade. Suas cicatrizes estavam reabertas em cortes fundos que ela fizera com as unhas e, pálida e semiconsciente, ela desistira quando não conseguia mais espremer sangue para fora do corpo.

Abracei-a preocupado, tentando reanimá-la. A garota tossiu, mais pálida que o comum. Por um instante, divaguei considerando como naquela altura ela parecia ser um anjinho alquebrado. Então Lua sentou no chão com as mãozinhas escondendo o rosto, soluçando em um choro. Quis dar uma bronca nela, dizer que fizera mal em se mutilar pela escrita.

"Nunca mais faça isso. Você só pode escrever com o meu sangue daqui para frente, certo?"ordenei, inconsequente, garantindo-me na efemeridade de meus fluídos enquanto sonhando.

Lua levantou o rosto, os olhos num alaranjado bizarro por culpa do choro, e deu um pequeno sorrisinho. Perdoei seus erros e a abracei outra vez, enquanto acariciava seus cabelinhos negros e macios contra meu ombro. Aproveitei para tentar ler algo do que ela, durante o dia, tão penosamente escrevera;

"Sangue, amor e medo. Carinho, covardia e ignorância. A morte e a vida, a possessão e o domínio, a infiltração bolorenta da alma. São as ferramentas que usarei para alcançar o mundo."

Estremeci. Soltei-a do abraço. Lua sorria, cantarolava e me encarava, satisfeita, enquanto eu virava o rosto a ler mais do bizarro manual de autoria de minha menininha.

LuaWhere stories live. Discover now