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Quero dizer antes de tudo que hoje enxergo minha burrice e me arrependo pelo feito.

Mas na época, do alto do meu ceticismo, acreditava que agia da maneira mais correta possível naquela situação que via como meramente banal.

Era outra noite do mesmo sonho. A mesma garota de olhos amarelos e novamente sua musiquinha. Eu, apoiado na parede oposta, observando. Poderia ter o mesmo desenrolar das outras noites, a mesma passagem monótona de horas, mas eu me aproximei da criança e estendi-lhe a mão.

Ela me encarou surpresa, como se somente agora percebesse minha presença no quarto, descobrindo pela primeira vez que eu estava lá. Calou um instante sua música, levantou suas pernas magrelas da posição encolhida e, quieta, ficou me observando.

Não me dei pelo perigo ainda. Sorri para a garota e falei com ela, meu trágico erro, meu mais desgraçado e estúpido ato, o que me treme os dedos e gela a espinha ao relatar.

"Gosto da tua música, menina."

Ela sorriu mostrando uma boca ausente de qualquer dente e de língua branca contra lábios ressecados. Eu via alegria no sorriso banguela e nas covinhas de suas bochechas pálidas, eu via uma infância mesmo nas suas olheiras enrugadas, e não me contive em prosseguir.

"Qual é o seu nome?", quis saber.

Ela estremeceu um instante com a pergunta. Apoiou uma mão contra o queixinho, virou os olhos pensativa e deu de ombros, assumindo não saber quem era. Achei graça naquilo, outra vez vi nela aquele tipo inocente de beleza.

"Tudo bem, nós vamos descobrir juntos", eu garanti, antes de complementar uma proposta amaldiçoada "e a gente também pode conseguir uma letra para essa sua música aí".

A menininha sorriu outra vez, mais receptiva, e deu outro passo em minha direção. Naquela altura eu ainda não sabia, mas ela não entendia uma palavra sequer do que eu dizia, tanto quanto não entenderia de qualquer outro idioma. Era uma criaturinha selvagem, iletrada, solitária e isolada que naquele ponto não tinha mais qualquer contato com qualquer um. Ninguém na minha cabeça podia ser estúpido além de mim.

Dei mais um passo. Toquei o ombro da menina e ela se maravilhou, absolutamente agraciada pelo toque. Senti a pele fria e rígida, úmida, e voltei a mim, percebendo a estranheza daquilo e recuperando o juízo sobre o perigo da estranha criança. Afastei-me novamente, dei um sorriso amarelo e estremeci.

Vendo meu susto, a garota deu outro passo para voltar até mim e abraçou minha cintura. Levantou os olhos e me olhou de baixo, cantarolou junto a mim por mais um tempo, durante o qual permaneci estático, até que finalmente acordei.

Naquele dia selei minha jornada. Pelas horas, a música ainda estava na minha lembrança, e cheguei a gastar alguns minutos livres da minha tarde tentando bolar uma letra que nela se encaixasse.

LuaWhere stories live. Discover now